um ente que está a ser ao Ser…

Loading

Meus cães de Gnaisse

À porta de entrada do jardim da minha casa, que saída à rua dá, sobre duas altas e rígidas colunas, postam-se os meus dois cães; são eles de pedra, e o são de pedra Gnaisse; a ser assim, pétrea haverá de ser a fidelidade que esses meus fieis amigos devotam a mim… O escultor que os concebera, ao fazê-lo, zelo a mais dispôs para usar o cinzel e o maço; e para torná-los semelhantes entre si, quando não, idênticos, esforço redobrado empenhou; todavia, só depois que os entregou à luz, às claras, melhor pode vê-los quão afins entre si ficaram, logo, logo depois de pôr-se diante desse par de perfeições artísticas, aquele artesão não mais conseguiu ver em seus “filhos” dele dois indivíduos, ainda que muito empenho teve para identificar o primogênito entre eles… Assim, para mais consolidar o seu êxito, aquele artífice por ter concebido meus cães em formas precisamente análogas, quis batizá-los com os estes nomes: White e Branco; tais nomes não seriam mais adequados, pois tão logo o Branco recebeu o seu próprio nome, com o nome dado ao seu irmão, plenamente se satisfez; portanto, por mais que desejasse alguém, ver esses caninos distintos entre si, não conseguiria, pois não poderia encontrar, ainda que fosse muito grande o seu querer, sequer uma mínima diferença que pudesse dar a cada um deles identidade diversa. Quando lado a lado se postavam essas duas criaturas, a dificuldade para descobrir quem era quem, não era menor que o capricho e gosto que experimentam dois cachorros disputando um mesmo osso…

Quando diante dos meus olhos, pela primeira vez, estiveram aqueles dois entes prodigiosos, ao olhá-los, tive a nítida sensação de que estava a portar visão dupla… Assim fiquei convencido de aquelas esculturas não foram talhadas à custa de um cinzel divino, mas, sim, moldadas e polidas pelas mãos de um artífice, a mando do Grande Arquiteto do Universo; contudo, para eximir-me dessa descabida convicção, entendi que bom êxito alcançaria, se refletisse sobre a real origem dos inanimados blocos de rocha que serviram de matéria prima para a consecução daquela formidável obra de arte; assim, isto julguei: no princípio, a lava vulcânica, matriz daquela rocha, já seria singular pela sua cor e textura, ou seja, pela sua cor, e pela sua estrutura microscópica resultante da forma em que seus cristais se encontravam unidos entre si, sobremaneira, destacar-se-ia; e isso se deu quando aquela lava se encontrava presa nas entranhas da terra, ao desejar sentir o calor do sol, se derramou na superfície do planeta que a prendia, e aprisionou em sua garganta incandescente, para o seu próprio alimento, o ar; com isso, esse magma se solidificou; então, o vento, desejando resgatar o seu pacífico irmão — o ar — começou o seu lento e eterno trabalho de corroer aqueles blocos malconformados; esses bem querendo receber afagos, ainda assim, não se preocuparam com o tempo, pois quando o vento chegava, por ele, eles estavam a esperar, e quando ele partia, tranquilos, eles ficavam, pois, brevemente, ele — o vento — haveria de voltar… Com essa certeza, aqueles blocos continuavam envoltos por sua eterna espera… Assim, meus olhos desocupados sob o jugo dos meus pensamentos livres, estavam diante das verdadeiras e únicas testemunhas oculares dos primórdios da história. Depois desse envolvimento emocional, aqueles cães se apresentaram a mim como entes esquisitos e vivos; digo assim, porque ao olhá-los com a sã consciência que bem preservo até hoje, sem muito esforço, identifiquei criaturas descomunais e não tão inertes, pois, delas ao retirar os meus olhos, para logo em seguida, a elas voltá-los, percebi que também os olhos pétreos daqueles caninos, algum tanto perdiam a sua rigidez para admirar a higidez das imperfeições do meu rosto…

Voltemos à porta da minha casa:

A rua onde se situa a minha casa é larga e plana; assim, bem pode adequar-se à infestação de carros e motos, logo, logo, às noites altas, vez por outra, nesse logradouro público, sob o comando de entes desumanos e inconsequentes, veículos desnorteados dão-se às exibições arriscadas; quando então, esses são conduzidos por aqueles quadrupedes apoiados em duas patas. Para que esses eventos insanos possam ocorrer, a correr se põem alguns daqueles automóveis sustidos sobre duas das suas quatro rodas; já outros que apenas de duas dessas dispõem, tão somente, dispendem de uma delas para mover-se; ainda assim, ao dia seguinte, aquele espaço de exibições foi preservado um tanto íntegro à caminhada para muitas pessoas que de vez em onde, em dois pés, como se quatro tivessem, desejam caminhar…

Conforme já dissera, à porta da minha casa, há a montar guarda os meus dois fieis e indistintos guardas — os meus cães de Gnaisse — ocupam-se em resguardar-me daqueles que sem convite, querem adentrar-se pelo meu espaço, ou desejam esquadrinhar o meu mundo, sem que eu lhos permita; com essa ou aquela intenção, tanto àqueles que estão a querer, ou quanto àqueles que estão a desejar, meus cães não dão confiança, pois até às pessoas tidas por boas, eles não dispensam simpatia irrestrita, uma vez que entre dez dessas, em menos de cinco confiam…

Entre todas as pessoas que passam pela rua da minha casa, algumas dão algum trabalho às pernas em benefício ao coração, entretanto, entre tantas que há, há aquelas que lá estão a dar liberdade à língua em detrimento à vida alheia; e entre essa gente, há sempre os ladrões; e tantos há, que a ladrar para denunciá-los, meus cães se mostram indispostos, pois não teriam fôlego para fazê-lo… 

Por mais que entre si, sejam indistintos os meus cães, ainda assim, em cada um desses entes formidáveis, esperava ver criaturas diversas; contudo, para não contrariar-me inteiramente, se cada um dos meus adoráveis e fieis amigos, à cada pessoa ímpar, tem olhar diferente, diferentes são eles entre si… Com efeito, diante de alguns movimentos dos entes humanos, meus amáveis guardas não se tornam indiferentes, todavia, muita vez, com facilidade, ignoram-nos, ou até os desprezam, pois, tomá-los por presas jamais conseguiriam, por tão insossa que é ao paladar canino, a indigesta carne humana… Ainda assim, por tanto que meus cães veem músculos em movimento, quando se põem a observar as pessoas em movimento, atividade às suas mandíbulas deles desejam dar; mas, para o bem de todos, se mantêm hirtas, em benefício a alguns transeuntes…

Do alto de seus pedestais — os dos meus cachorros – muita vez, castigados pelo sol e ventos, eventos de toda sorte assistem esses bondosos amigos meus, pois, com os seus argutos olhos e o seu aguçado olfato deles, estão sempre a identificar quaisquer entes que estejam em movimento; ainda assim, os meus confiáveis protetores mais se inclinam ao sossego, logo, quando podem, tornam-se menos vigilantes, passam a esperar que se aquiete o ar, que se abrande o calor, ou que se amaine o frio, ou ainda, que se esvaia a chuva; nessas condições mais amenas, com outros olhos passam a observar as pessoas, assim, o assunto entre eles torna-se mais diverso, e não menos transverso, pois, protestam contra a obesidade dos transeuntes que sempre é notada; enaltecem a magreza que vez ou outra é vista; condenam a gula; elaboram dietas; mofam dos tornozelos; elogiam joelhos; por fim, julgam as cabeças das pessoas, pelos dois pés que essas têm a sustentar-se, ou antes, julgam-nas pela limitada mobilidade que lhes oferecem os seus próprios pés delas quando estão a caminhar; pela força dessa convicção, consideram frágil a higidez do cérebro humano que mal se atém à rigidez dos membros inferiores dos corpos quando esses desejam dar passos mais decisivos sobre solo áspero…

Por fim, pôr fim a este relato desejo com estas palavras: amiúde, meus cães por susterem em si atilado faro, sentem-se afligidos, pois infringidos são os ares por flatos que escapam entre as pernas alheias… Contudo, ainda que esses fétidos eflúvios se arrefecem, de baixo para cima, ou antes, para todos os lados, são capazes de atingir o espaço; e esse, por sua vez, necessariamente, está o alcance do apurado olfato canino…

Não só más visões despertam os meus cães; uma vez que, vez por outra, entre as más, as boas são suscitadas pelos seus quase perfeitos semelhantes deles; esses, ainda que contrafeitos, de onde a onde, a caminhar são vistos ao lado dos humanos… 

Se outros viventes observassem a faina dos meus cães de pedra, tomá-la-iam por uma atividade nada a mais que enfadonha, contudo, pelo cristalino discernimento que esses têm, jamais poderiam vê-la fastidiosa, pois se o fizessem, eternamente, de uma danosa consequência padeceriam eles, uma vez que eternos hão de ser os meus fieis amigos… +A ser assim, por passarem por todas as estações sem fim… E se com mais alegria, esperam pelo verão, verão eles que um ou mais dos entes humanos vistos na última primavera, por doentes que ficaram, não mais sentiram calor, pois, encontram-se cobertos por flores murchas iluminadas por pálidas velas…

 

* Gnaisse — Rocha metamórfica feldspática, nitidamente cristalina, e de composição mineralógica muito variável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *