um ente que está a ser ao Ser…
Eugene Gaon

Eugene Gaon

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Meus cães de Gnaisse

À porta de entrada do jardim da minha casa, que saída à rua dá, sobre duas altas e rígidas colunas, postam-se os meus dois cães; são eles de pedra, e o são de pedra Gnaisse; a ser assim, pétrea haverá de ser a fidelidade que esses meus fieis amigos devotam a mim… O escultor que os concebera, ao fazê-lo, zelo a mais dispôs para usar o cinzel e o maço; e para torná-los semelhantes entre si, quando não, idênticos, esforço redobrado empenhou; todavia, só depois que os entregou à luz, às claras, melhor pode vê-los quão afins entre si ficaram, logo, logo depois de pôr-se diante desse par de perfeições artísticas, aquele artesão não mais conseguiu ver em seus “filhos” dele dois indivíduos, ainda que muito empenho teve para identificar o primogênito entre eles… Assim, para mais consolidar o seu êxito, aquele artífice por ter concebido meus cães em formas precisamente análogas, quis batizá-los com os estes nomes: White e Branco; tais nomes não seriam mais adequados, pois tão logo o Branco recebeu o seu próprio nome, com o nome dado ao seu irmão, plenamente se satisfez; portanto, por mais que desejasse alguém, ver esses caninos distintos entre si, não conseguiria, pois não poderia encontrar, ainda que fosse muito grande o seu querer, sequer uma mínima diferença que pudesse dar a cada um deles identidade diversa. Quando lado a lado se postavam essas duas criaturas, a dificuldade para descobrir quem era quem, não era menor que o capricho e gosto que experimentam dois cachorros disputando um mesmo osso…

Quando diante dos meus olhos, pela primeira vez, estiveram aqueles dois entes prodigiosos, ao olhá-los, tive a nítida sensação de que estava a portar visão dupla… Assim fiquei convencido de aquelas esculturas não foram talhadas à custa de um cinzel divino, mas, sim, moldadas e polidas pelas mãos de um artífice, a mando do Grande Arquiteto do Universo; contudo, para eximir-me dessa descabida convicção, entendi que bom êxito alcançaria, se refletisse sobre a real origem dos inanimados blocos de rocha que serviram de matéria prima para a consecução daquela formidável obra de arte; assim, isto julguei: no princípio, a lava vulcânica, matriz daquela rocha, já seria singular pela sua cor e textura, ou seja, pela sua cor, e pela sua estrutura microscópica resultante da forma em que seus cristais se encontravam unidos entre si, sobremaneira, destacar-se-ia; e isso se deu quando aquela lava se encontrava presa nas entranhas da terra, ao desejar sentir o calor do sol, se derramou na superfície do planeta que a prendia, e aprisionou em sua garganta incandescente, para o seu próprio alimento, o ar; com isso, esse magma se solidificou; então, o vento, desejando resgatar o seu pacífico irmão — o ar — começou o seu lento e eterno trabalho de corroer aqueles blocos malconformados; esses bem querendo receber afagos, ainda assim, não se preocuparam com o tempo, pois quando o vento chegava, por ele, eles estavam a esperar, e quando ele partia, tranquilos, eles ficavam, pois, brevemente, ele — o vento — haveria de voltar… Com essa certeza, aqueles blocos continuavam envoltos por sua eterna espera… Assim, meus olhos desocupados sob o jugo dos meus pensamentos livres, estavam diante das verdadeiras e únicas testemunhas oculares dos primórdios da história. Depois desse envolvimento emocional, aqueles cães se apresentaram a mim como entes esquisitos e vivos; digo assim, porque ao olhá-los com a sã consciência que bem preservo até hoje, sem muito esforço, identifiquei criaturas descomunais e não tão inertes, pois, delas ao retirar os meus olhos, para logo em seguida, a elas voltá-los, percebi que também os olhos pétreos daqueles caninos, algum tanto perdiam a sua rigidez para admirar a higidez das imperfeições do meu rosto…

Voltemos à porta da minha casa:

A rua onde se situa a minha casa é larga e plana; assim, bem pode adequar-se à infestação de carros e motos, logo, logo, às noites altas, vez por outra, nesse logradouro público, sob o comando de entes desumanos e inconsequentes, veículos desnorteados dão-se às exibições arriscadas; quando então, esses são conduzidos por aqueles quadrupedes apoiados em duas patas. Para que esses eventos insanos possam ocorrer, a correr se põem alguns daqueles automóveis sustidos sobre duas das suas quatro rodas; já outros que apenas de duas dessas dispõem, tão somente, dispendem de uma delas para mover-se; ainda assim, ao dia seguinte, aquele espaço de exibições foi preservado um tanto íntegro à caminhada para muitas pessoas que de vez em onde, em dois pés, como se quatro tivessem, desejam caminhar…

Conforme já dissera, à porta da minha casa, há a montar guarda os meus dois fieis e indistintos guardas — os meus cães de Gnaisse — ocupam-se em resguardar-me daqueles que sem convite, querem adentrar-se pelo meu espaço, ou desejam esquadrinhar o meu mundo, sem que eu lhos permita; com essa ou aquela intenção, tanto àqueles que estão a querer, ou quanto àqueles que estão a desejar, meus cães não dão confiança, pois até às pessoas tidas por boas, eles não dispensam simpatia irrestrita, uma vez que entre dez dessas, em menos de cinco confiam…

Entre todas as pessoas que passam pela rua da minha casa, algumas dão algum trabalho às pernas em benefício ao coração, entretanto, entre tantas que há, há aquelas que lá estão a dar liberdade à língua em detrimento à vida alheia; e entre essa gente, há sempre os ladrões; e tantos há, que a ladrar para denunciá-los, meus cães se mostram indispostos, pois não teriam fôlego para fazê-lo… 

Por mais que entre si, sejam indistintos os meus cães, ainda assim, em cada um desses entes formidáveis, esperava ver criaturas diversas; contudo, para não contrariar-me inteiramente, se cada um dos meus adoráveis e fieis amigos, à cada pessoa ímpar, tem olhar diferente, diferentes são eles entre si… Com efeito, diante de alguns movimentos dos entes humanos, meus amáveis guardas não se tornam indiferentes, todavia, muita vez, com facilidade, ignoram-nos, ou até os desprezam, pois, tomá-los por presas jamais conseguiriam, por tão insossa que é ao paladar canino, a indigesta carne humana… Ainda assim, por tanto que meus cães veem músculos em movimento, quando se põem a observar as pessoas em movimento, atividade às suas mandíbulas deles desejam dar; mas, para o bem de todos, se mantêm hirtas, em benefício a alguns transeuntes…

Do alto de seus pedestais — os dos meus cachorros – muita vez, castigados pelo sol e ventos, eventos de toda sorte assistem esses bondosos amigos meus, pois, com os seus argutos olhos e o seu aguçado olfato deles, estão sempre a identificar quaisquer entes que estejam em movimento; ainda assim, os meus confiáveis protetores mais se inclinam ao sossego, logo, quando podem, tornam-se menos vigilantes, passam a esperar que se aquiete o ar, que se abrande o calor, ou que se amaine o frio, ou ainda, que se esvaia a chuva; nessas condições mais amenas, com outros olhos passam a observar as pessoas, assim, o assunto entre eles torna-se mais diverso, e não menos transverso, pois, protestam contra a obesidade dos transeuntes que sempre é notada; enaltecem a magreza que vez ou outra é vista; condenam a gula; elaboram dietas; mofam dos tornozelos; elogiam joelhos; por fim, julgam as cabeças das pessoas, pelos dois pés que essas têm a sustentar-se, ou antes, julgam-nas pela limitada mobilidade que lhes oferecem os seus próprios pés delas quando estão a caminhar; pela força dessa convicção, consideram frágil a higidez do cérebro humano que mal se atém à rigidez dos membros inferiores dos corpos quando esses desejam dar passos mais decisivos sobre solo áspero…

Por fim, pôr fim a este relato desejo com estas palavras: amiúde, meus cães por susterem em si atilado faro, sentem-se afligidos, pois infringidos são os ares por flatos que escapam entre as pernas alheias… Contudo, ainda que esses fétidos eflúvios se arrefecem, de baixo para cima, ou antes, para todos os lados, são capazes de atingir o espaço; e esse, por sua vez, necessariamente, está o alcance do apurado olfato canino…

Não só más visões despertam os meus cães; uma vez que, vez por outra, entre as más, as boas são suscitadas pelos seus quase perfeitos semelhantes deles; esses, ainda que contrafeitos, de onde a onde, a caminhar são vistos ao lado dos humanos… 

Se outros viventes observassem a faina dos meus cães de pedra, tomá-la-iam por uma atividade nada a mais que enfadonha, contudo, pelo cristalino discernimento que esses têm, jamais poderiam vê-la fastidiosa, pois se o fizessem, eternamente, de uma danosa consequência padeceriam eles, uma vez que eternos hão de ser os meus fieis amigos… +A ser assim, por passarem por todas as estações sem fim… E se com mais alegria, esperam pelo verão, verão eles que um ou mais dos entes humanos vistos na última primavera, por doentes que ficaram, não mais sentiram calor, pois, encontram-se cobertos por flores murchas iluminadas por pálidas velas…

 

* Gnaisse — Rocha metamórfica feldspática, nitidamente cristalina, e de composição mineralógica muito variável.

Demoliram o casarão da Rua das Mercês

Quanto a mim, quando ainda bem jovem, a Miopia limitou-me a visão; assim, para estender as minhas vistas ao além, me vi dependente de um par de óculos, pois não haveria de me conformar se notasse só o que bem à frente do meu nariz estivesse. Talvez, para compensar o meu estreito olhar, ao receber um par de lentes quase que perfeito, me julguei capaz de enxergar mais ao longe… Assim, depois de conceber o conto que abaixo se encontra, desejei que os teus olhos, ou antes, não só os teus, mas os olhos de quaisquer leitoras que possam lê-lo vissem em um velho lustre, o que há de significar não só a sua beleza em si, mas, sobretudo, notassem o efeito de sua luz, que bem pode representar o brilho daquelas que iluminam os nossos lares…

 

Aquele que inicia a descida à Rua das Mercês haverá de notar que ao longe, um velho telhado anuncia que está a proteger um grande casarão abandonado; aquele que inicia a subida àquela Rua, bem aos seus pés, e diante dos seus olhos, haverá de notar a exuberante fachada deste casarão. Por mais que estivesse desbotado, ainda assim, chamará a atenção do transeunte, a ponto de impedir que os seus olhos e as suas pernas sintam quão íngreme é esta rua, a Rua das Mercês.

Pobre casarão! Fora condenado por estar assentado em um rico terreno; agora em decadência, às vistas de poucos, a agonizante mansão ainda servia de deleite, mas, aos olhos da ganância, não passava de um casarão em ruínas, assim, nos últimos tempos, por várias vezes, vários homens deitaram-lhe o olhar, com a intenção de deitá-lo ao chão.

Sem nada impor, ele — o decaído prédio — há anos, se não mais conseguia contar com o valor da sua sólida estrutura, a sua própria e velha história nada lhe valia, pois já não havia quem dela se recordasse, uma vez que, aos jovens, há anos, ninguém mais a contava, assim, contava ele, tão somente para se manter de pé, com a sua desfigurada aparência apoiada na sua inércia; inércia à frente do último e indolente século mal vivido, quando, diante de uma cruel e inexorável realidade,  a cada dia, a decrépita mansão perdia a vaidade para se manter de pé, ainda assim, inabalável, ia vencendo os anos e os homens, a quem o tempo haverá de vencer sempre…

O desusado e vetusto palacete, de idade, tinha alguns anos que ultrapassavam dois séculos, e não menos que cem anos de resistência renhida às demolições; em todo esse período, abrigara e protegera uma única e nobre família, ou antes, de uma única família, estiveram sob a sua guarda, nove gerações; gerações sucessivas, que sucessivamente, ainda que a passos lentos, à nobreza, qualificações foram-lhes faltando…

— E o seu quintal?

O do casarão?

— Sim!

Lá se encontram também, tão bem enraizadas muitas histórias! Lá estavam tantos cordões, cordões umbilicais enterrados que perpetuaram em torno de si, a presença de seus donos que à sombra das muitas árvores frutíferas, colheram o doce sabor da infância… Lá ainda vivem frondosas jabuticabeiras que com seus mil olhos negros, viram emaranhadas entre seus galhos, pelo seu néctar em redondos potinhos, tantas crianças; majestosas mangueiras com suas mangas nascentes nas alturas, a agradecer por tantos anos já vividos, ainda oferecem seus frutos àqueles que não os percebem nascidos tão próximos do céu… Ainda a oferecer seus galhos aos pássaros para acomodarem seus ninhos, veem-se laranjeiras de estirpes raras que já não mais vivas estão em outros pomares; lá também permanecem os pés de jambo, a envolver o olhar dos moços, quando, ainda que distante, estão a ver em seus frutos vestidos de veludo, a suave cor da pele de seus amores; vivos encontram-se alguns marmeleiros que por muita vez, produziram frutos de onde saía a doce marmelada que nem sempre levada à boca, mitigava o amargo de suas varas levadas às nádegas; figueiras ainda se fazem presentes, cristalizadas no tempo, a recordar que por tantas vezes tiveram seus frutos cristalizados pelas mãos daquelas que em todos os tempos, cristalizaram o amor entre as famílias… 

— E o seu jardim?

O do casarão?

– Ah! Sim!

Jardim de tantas essências que envolveram e encantaram o tempo passado, para arrastá-lo ainda perfumado ao presente… Jardim que velho não ficaria para inundar para sempre, com as suas fragrâncias e cores sem idade, a imaginação dos jovens; jardim das jovens apaixonadas que ainda hoje, se tocassem com suas mãos a flores dos seus arbustos, de bustos perfumados sairiam; jardim das Damas da Noite de galhos entrelaçados entre si, que durante o dia, apenas esperavam pela ausência do Sol, para que pudessem livres, perfumar sob o olhar das estrelas, os sonhos dos jovens enamorados; jardim das roseiras brancas, que por amantes e virgens  mãos, ao altar chegaram; jardim dos jasmins de grandes ramagens que se alastravam salpicadas por tão pequeninas flores a inebriar todos os viventes que por lá passavam; jardim de vários matizes de várias flores, que arrancadas vivas, na hora da morte, corpos sem vida, ao túmulo acompanharam; jardim, que agora, por desumanas mãos, vê interrompida a passagem da seiva que vida aos seus galhos levou.

— E o chafariz?

– Ah! Sim!

O chafariz! Aquele que no passado, aos pássaros fora o doce refrigério, hoje, com os seus destroços, ora afogados na poeira, insistem em mostrar seus ornatos desfigurados.

— E agora?

Tudo será ceifado; raízes que sustentaram cores e odores serão arrancadas, pois, por mais uma vez, querem demolir o casarão da Rua das Mercês; e essa ameaça agora real, é mais encorpada, há alicerces mais sólidos para sustentá-la; elaboraram um projeto para executá-la; tudo haverá de ruir; fizeram um cronograma para jogar tudo ao chão, e em seguida, sustentada pela ambição, em seu lugar, um conjunto de modernas moradias será edificado…

— Oh, meu Deus! Que horror sentiremos! Diante desta iminente destruição!

— A venda do casarão fora consumada. A imprudência do velho proprietário se compôs com a ganância do novo adquirente. Ali será edificado um prédio composto de vinte pequenos e modernos apartamentos que muito bem seria pago pelo valor do terreno, e não pelo valor do casarão em si, pois esse, nada valia aos olhos do pretenso comprador. Depois desse empreendimento, desfeito será o sonho de muitas pessoas que não querem se despertar aos dias concretos de areia e pedra…

O senhor Tobias, este era o nome do atual proprietário, em alguns momentos, teve dúvida quanto ao negócio, pois ali nascera; não fora em outra casa que criou toda a sua família; sua mãe viera ao mundo entre as quatro paredes de algum dos muitos quartos daquela velha moradia; seu avô, pela primeira vez, vira o sol através de uma daquelas amplas janelas, janela de qualquer um dos muitos cômodos daquele vetusto monumento; sua bisavó dera os seus primeiros passos ao longo daquele longo corredor que dava acesso aos aposentos superiores.

— Este prédio nada vale, está fadado à demolição; este terreno precisa ser desocupado! Hei de vendê-lo antes que seja tombado pelo patrimônio público!

Essas razões foram concebidas na mente desocupada do senhor Tobias que se ocupava com pensamentos decadentes. Seus filhos abominavam tais projetos; repeliam a sua teimosia; não queriam se desfazer do lar. A esposa… Ah! Terna e amável criatura! Quisera sempre preservar a segurança dos seus filhos e velar pela  felicidade do seu esposo; desejara ver sempre os caminhos da sua família bem iluminados… Essa postura da companheira, muito incomodava o velho Tobias, não só por tolher a sua decisão imediata ao negócio, mas, mais por retratar a sua inabalável concepção de vida, pois aos longos anos divididos entre eles, nada estava a ser diferente, ou seja, tudo haveria de ser conservado, preservado, para ser legado às gerações vindouras, em nome do seu próprio bem e em segurança.

Desfazendo-se ou não da velha casa, a senhora Vicência — este era o nome da esposa do senhor Tobias — sofria com a impertinência do marido, contudo, resignava-se com esse crônico desconforto. O esposo para ela tinha poucos olhos, e muitos olhares para fora do lar davam-lhe ocupação; essa displicência, por tão antiga, perdera-se no tempo…

Ainda que estivesse, nos últimos tempos, envolvido com o novo, apenas o velho Tobias não percebeu que só à nova empresa aquela venda seria conveniente…

Fez-se o negócio.

Principiaram a demolição; todo o material que compunha o velho prédio, dando-lhe forma e sustentação, ao abandono seria lançado… O decrépito imóvel, agora, deveria se decompor; jogado ao chão, nada mais seria além de escombros; talvez, com o seu entulho, poder-se-ia aterrar algum outro terreno imprestável! O novo proprietário assim pensava… Pensava diferente um dos sobrinhos da senhora Vicência, pois, julgava ser possível reaproveitar grande parte do material que seria desprezado após a demolição daquela centenária casa; assim, tão logo este jovem alcançou meios e disposição para fazer valer o seu propósito, solicitou ao novo proprietário a permissão para remover e tomar posse do espólio daquela centenária de edificação. Sem dificuldade, o jovem empreendedor e o velho dissipador deram-lhe a devida autorização para retirar para si, o que bem lhe aprouvesse. Depois dessa autorização, de acordo com o ritmo e fases da demolição, todo objeto que apresentasse alguma serventia, recolheria para si aquele jovem; e havia muito material a ser reaproveitado! Assim, bom proveito seria alcançado com os esteios de Aroeira* que deram sustentação a todo corpo daquele casarão por séculos; à boa utilidade destinavam os barrotes de Monjolo** que por longos anos serviram de apoio às tábuas de assoalho confeccionadas todas em Peroba Rosa***; e estas também a bom uso destinavam-se, pois ainda poderiam servir de estrado para muitos passos inseguros, e alguns mais determinados; e perfeitas estavam as portas e as janelas todas em Cedro****, logo, com grande vantagem, seriam reaproveitas.

Tudo pagaria muito bem, pelo pequeno trabalho que tivera o jovem a recolher o que muito valia a ser reaproveitado. Por fim, já prestes a dar fim à sua lida, o jovem se deparou com uma pesada luminária de teto embaraçada entre teias de aranha; ainda que por ela menor interesse apresentasse, notou que naquele lugar, há anos, sem mais razão a ser, ela fora desprezada; e sem despender visão mais aguda, percebeu que as várias mangas de cristal rendadas que a compunham, além de proteger algumas lâmpadas — quase todas já mortas há anos — ainda guardavam restos crestados de vários insetos alados, tais quais, besouros, pernilongos, mariposas, etc. Por cômoda e inconsequente curiosidade, uma vez que, bem à sua frente se encontrava o interruptor que poderia comandar aquelas lâmpadas, intendeu o jovem de testá-lo; ao fazê-lo, para a sua grande surpresa, entre as doze lâmpadas que compunham aquele desprezível e empoeirado lustre, duas ou três delas lhe ofereceram uma pálida luz, pois com suas intactas resistências, resistiram ao tempo que tanto fez para impedi-las de iluminar aquele grande salão… O cuidado maior que os anos tiveram para manter seguro ao teto aquele velho candelabro, não foi maior que o zelo do jovem ao despendurá-lo e levá-lo para sua casa. Tão logo pode, pôs-se a desmontá-lo cuidadosamente, em seguida, o lavou e o poliu cuidadosamente, depois de montá-lo, depôs o solitário globo que mal iluminava a sua sala, dando ao velho soberano, o direito pleno de tomar posse do novo lugar, para novamente, depois de tantos anos nas trevas, agora com as suas doze lâmpadas, entre elas, três com a sua velha resistência, resistências intactas mantinham, logo, não só das novas dependeram para atender a esta ordem: “Fiat lux” *****…

Meses depois, Tobias visitou o sobrinho. Ao adentrar pela sala de visitas, ficou maravilhado debaixo daquela relíquia iluminada; julgou conhecê-la, teve dúvida; sob o fulgor do velho lampadário, sua memória, devagar, foi clareando; poderia ter voltado seus olhos ao velho lustre, mas não conseguiu fazê-lo, tão somente os manteve voltados ao chão; talvez chorasse, creio! Sem dizer quase nenhuma palavra, despediu-se do sobrinho, deixando-o um tanto enleado.

Ao chegar à sua casa, o velho Tobias olhando para os olhos azuis da sua esposa, que jamais lhe negaram o brilho, deu-lhe um longo abraço; abraço pródigo que por longo tempo, deixou abandonado o peito da companheira…

 

*       Astronium urundeuva

**     Enterolobium monjolo

***   Aspidosperma polyneuron

**** Cedrela angustifólia

***** “Fiat lux” — Faz luz!

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Vem a mim, amigo!

Se cedes, não terás sede.

Água tens comigo.

 

Não vais desistir?

Tu feres outrem e a fé.

Deixas de existir.

 

Mal da mente tiras.
Eu sei que de ti cansei.
Vives de mentiras.

 

Livra-te da ofensa.
A morte não cinde o amor.
Perdão as chagas pensa.

 

Se ouvisse, oporia.
Atente! Se ouvir, entende.

Disfarce a aporia.

 

Há amor que esfria.
Talvez, foste-te de vez.
Afinal, és fria.

 

Desejo-te êxito.
A morte cede ao amor.
De viver não hesito.

 

O amor te desperta.
É dia, ouço a Cotovia.
Meu beijo te alerta.

 

Tempo não pressente…
Se vir não será devir.
Não toque o presente…

 

Há eltras trocadas.
Talvez, às claras não vês.

Tens vistas cansadas?

 

Com luxo te vestes.
Às traças caminho traças…
No céu não investes.

 

Vento acresce as vagas.
Se leve cais, bem te elevas.
As lágrimas afogas.

 

Ao céu não hás de ir.
A luz não mais te seduz.
Mal vais em ti adir.

 

Atentai ao ouvido!

As vis palavras ouvis.

Quereis cair no olvido?

 

Mar! O que flagraste?

Há vela alta e quilha velha

Oh nau! Naufragaste

 

Mal vem de cisão.

Se fé tens, tu não te feres.

Toma a decisão.

 

Sempre hei de existir.
Em ti, paz e amor senti.
Não vou desistir!

 

Há a amenidade.

Do ocaso não faço caso.

Tenho amena idade.

 

À fé hei de ver.
Há luz que mais me seduz.
A Ele estou a dever…


São pequeninos poemas assim definidos:

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Através de um distinto e pequenino poema, denominado haicai, quaisquer temas que suscitam interesse aos poetas, poderão ser considerados à composição dessa diminuta ode poética; distinção atribuo a ela, por não conseguir encontrá-la bem definida entre os seus demais semelhantes que conheço; entretanto, para concebê-la, ao dispor de tantos temas que há para sustentar as suas bases dela, o poeta há de escolher entre eles aquele que possa levar o leitor a uma edificante reflexão; logo, se é para edificar, é de ficar feliz aquela pessoa ao encontrar para si algum haver a ver que essa diminuta obra poética, por certo, encerra em si um grande valor… E mais, para que isso se dê, ao concretizar-se, necessariamente, tal exíguo trabalho literário deverá submeter-se a três precisas e estanques regras, quais sejam:

1 – Cada haicai haverá de fundar-se em uma estrofe única formada apenas por três versos, ou seja, cada um desses poemetos compor-se-á de apenas um terceto.

2 – Desse trio de versos, o primeiro e o terceiro, individualmente, compor-se-ão de cinco sílabas poéticas, e entre si, rimar-se-ão; já o segundo verso, encerar-se-á em sete sílabas poéticas; e mais, por sua própria feição, a sua segunda sílaba dele, haverá de ser sempre tônica, e há de rimar-se com a sua sétima sílaba dele.

3 – O primeiro verso, ou o terceiro que compõe quaisquer haicais, ao fundar-se no tema que lhe deu origem, há de expressar-se através de uma asserção que possa sustentar em si um sentido absoluto, aparentemente dessujeito dos demais dois outros pares seus; contudo, com esses ele se interligará; e mais, esse verso ímpar, haverá de carrear uma mensagem que em si poderá ser clara ou subliminar.

Entre aqueles dois versos — o primeiro e o terceiro — conforme, dissera, um deles poderá dispensar aquelas características essenciais indicadas logo acima; já o outro, para fazer-se bem compreendido, além de preservar aqueles caracteres, dependerá do segundo verso; com isso, esse terá naquele o seu complemento.

Em situações singulares (o que suscita maior dificuldade e não menor trabalho à sua concepção) os dois versos — o primeiro e o terceiro — que compõem os haicais poderão servir de complemento ao segundo verso, porém, ao fazê-lo, cada um daqueles versos haverá de manter a sua expressão própria e independente.

Vê abaixo um exemplo de haicai que se submete às normas e preceitos impostos acima. Logo em seguida, hás de notar um espécime que contempla aquelas ditas “situações singulares”:

 

 

Cultivas vaidade?

Tu podes esvair-te em pó.

Eis que já vai a idade…

 

Que pose é essa?
És servo. Senhor vais ser?
Peso não há à essa…

 

Depois de ver esses, toque aqui para deparar-se com outros:

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A festa de aniversário do coronel Vittorio Gogliati

Há um bom tempo, soube que o Tempo por nada, nada espera; a ser assim, se esse cruel agente da eversão de tudo que há, não dispõe de tempo para nos atender, entender o que dele pensamos não, naturalmente, não está ao nosso alcance; de mais a mais, para ele qualquer evento é vento que passa para jamais voltar, pois, se há o Devir, de vir ao encontro desse, é o único ofício do próprio Tempo, logo, esse ente da razão não nos pode garantir tempo favorável para cruzarmos o Atlântico… Já que é assim, e jamais poderá ser diferente, sem maior segurança, do novo continente para alcançar o velho mundo, se alguma pessoa desejar sair, terá à sua disposição apenas dois caminhos, quais sejam há de enfrentar nuvens colossais ou águas abissais… Se essa aventura jamais foi fácil, difícil para mim, sempre será opor-me ao Grande Oceano, ou confrontar os céus, pois afeito a feito semelhante, em tempo algum, eu fui… Portanto, portando um temor crônico, se quisesse enfrentar ares descomunais, ou águas titânicas, dependeria no mínimo de um grande e bem definido motivo… A vista disso, se esse risco eu quisesse correr, recorrer a segunda via, não seria a minha primeira inclinação, pois de alguém que a transpusera, recebi esta advertência: ao encontrar-se no ocidente, se quiser alcançar o oriente, oriente-se no sentido oeste-leste, em seguida, erga a fronte e afronte as águas tenebrosas que se encontram de permeio; entretanto, faça-o sem ater-se à sua superfície delas, pois em nenhum dos seus pontos dela, toma-se pé; mas, mais receio tive, quando aquela pessoa mais isto me disse: +se quiser alcançar o Velho Mundo, através do primeiro trajeto, ou seja, através do céu, o seu próprio medo poderá justificar-se, uma vez que se o ar rarefeito ninguém pode cruzar devagar, divagar enquanto estiver a vagar entre nuvens instáveis que mal sustentam friáveis e passageiras imagens, é impossível, pois apenas com os pés em terra firme, pode-se esmar a esmo…

Se não sou capaz de superar todos os meus temores, ao menos, o medo que sempre tivera às alturas julguei necessário aniquilar o quanto antes, pois, a esperar pelo nascimento do primeiro filho da minha primeira filha já estava eu há alguns bons meses, ou até, há anos. Assim, se o tempo está sempre a rugir, agir logo depois do nascimento dessa criança, seria a minha primeira e imediata iniciativa, pois se desejasse conhecer aquele novo descendente meu, só poderia fazê-lo, se vencesse o espaço que separa os dois mundos, o seja, o novo e o velho continentes. Para alcançar esse intento, haveria antes de extinguir aquele velho receio arraigado no seio da minha alma; entretanto, maior estímulo não teria para aniquilar aquela fobia, se pudesse fazer acepção entre os dois gêneros que há para distinguir netos, quais sejam os gêneros feminino e o masculino, pois, só teria interesse por esta ou aquela dileção, se antes pudesse dissuadir dos seus propósitos o acaso, caso esse ente da razão haja e aja…

Por inúmeros momentos, antes que pudesse tornar-me avô, em meus braços presumi um neto… Para superar essa cadência infundada, se a cada dia, a relevo, relevo não dará à minha predileção indevida, a minha prezada leitora… A ser assim, se no início deste parágrafo, com ironia, usei a palavra neto sem à prudência pedir licença prévia, previa, talvez, o nascimento de uma neta…

Tempo razoável esperei para consumar aquele desejo — o de tornar-me avô — pois, aguardei por cinco anos até que um primeiro rebento do meu já maduro galho houve por bem eclodir. Enquanto esperava por esse evento, maior tranquilidade não encontrei, pois, de antemão, se isto da minha mente não fugia, fulgia a todo momento nos meus pensamentos: para conhecer o descendente primogênito da minha filha primogênita, mais cedo ou mais tarde, hei de cruzar o Atlântico…

Depois de passado aquele longo tempo, se o meu velho temor da minha essência não foi extirpado, ou ao menos por ela relevado, revelado isto aos meus netos, algum dia deixarei: se aquele colosso hídrico jamais fugiu da minha fantasia demente, de mente sã, quando me encontro na iminência de partir à Europa, ainda assim, durante inquietantes sonhos, afogo-me nas águas do Atlântico… Se isso sempre acontece, antes que chegasse aquele momento — aquele mais esperado pela minha filha — com insegurança, em terra firme permaneci do lado de cá, deixando de lá o desconhecido e velho Mundo pois de permeio continuava o Grande Oceano. Só recentemente, mesmo depois de saber que nascera a minha primeira netinha, sem pressa, ainda estava a aguardar que em meu próprio fuste fluísse com mais vigor uma nova seiva, pois, para conhecer aquele recém-nascido, ou antes, para alcançar as terras situadas além-mar, dependia de coragem… Assim, só depois de assenhorar-me de uma denodada disposição, minha esposa e eu fomos à Itália conhecer e receber em nossos braços uma frágil criança não menos forte que as demais outras de seis meses de idade; entretanto, já nascera com força suficiente para livrar um novo avô daquele velho medo às alturas e às profundezas… Ao chegar àquelas terras, logo de início, não me acomodei com a temperatura que as envolvia; posto que no meu país, somente um calor fora de época poderia aquecer o sétimo mês do ano que por lá se encontrava incandescente a ponto de deixar quase que em chamas os próprios Alpes… Por conta dessa realidade, se no calendário civil se viu o inverno, o inferno bem mais, ou mais bem aquecido sentir-se-ia sob aquele ígneo clima… Assim, ainda que houvesse necessidade, se eu ousasse ajustar o meu relógio de pulso em função daquela aberração térmica, frustrar-me-ia, pois confuso com o fuso horário daquela região ficaria cada um dos ponteiros químicos do meu ciclo circadiano, portanto, definitivamente, isso eu não fiz, pois só poderia fazê-lo, se pudesse um tanto no tempo voltar-me, ou lançar-me bem além daqueles dias abrasadores…

Muito envolvidos ficamos todos nós com aquela criança recém-nascida — a mãe, o pai, os parentes europeus, minha esposa e eu — entretanto, entre tanta gente na fila do envolvimento, planejei postar-me à frente de todas essas pessoas, ou antes, à minha frente, se pudesse, permitiria apenas a minha filha, pois é difícil opor-se à mãe, quando diante dos seus olhos dela, está um filho…

Se envolvidos com a nossa neta, os avós ficaríamos por vários dias, entre os nossos afáveis afazeres, por três manhãs de cada semana, enquanto minha filha mais diretamente se ocupava com a sua atividade materna, contraí uma obrigação, qual seja ao consumo doméstico, em torno de oito litros de água potável deveria eu buscar em uma fontana localizada bem próxima da residência que estávamos a ocupar.

A meio caminho por onde eu deveria passar para alcançar esse olho-d’água, havia uma ampla área destinada à realização de eventos ao ar livre; contíguas a esse grande espaço, encontravam-se ordenadas entre si e de forma retilínea várias e frondosas árvores. Para que no presente esses luxuriantes monumentos vivos pudessem compor essa exuberante alameda, há meio século, espaçadas entre si por quatro a seis metros, cuidadosamente, foram plantadas não menos que oitenta pequeninas mudas de uma determinada espécie vegetal pertencente ao gênero Populus. Depois de crescidas, aos olhos dos atentos transeuntes que por ali estavam a passar, tão bem perfiladas encontravam-se essas verdes e vivas colunas de espécimes botânicos, que mais lhes afiguravam postadas, tais quais o fazem os soldados em formação quando estão a aguardar diante de si algum distinto oficial disposto a passar em revista a tropa… E para mais se assemelhar a uma pequena guarnição de militares que se encontrava prestes a receber alguma merecida homenagem — ainda póstuma — ao pé de cada uma dessas árvores, encontravam-se uma minúscula lâmpada ao lado de uma pequena placa de metal; nessa estava gravado o nome de um determinado soldado filho do mesmo município onde aqueles espécimes vegetais estavam a vicejar; além do nome desse militar que perdera a sua vida em algum distante campo de batalha entre tantos que serviram de palco à uma das duas grandes guerras, em destaque, estava talhada a data do seu nascimento dele; o dia da sua morte dele, e por fim, a sua patente militar dele. Esse cenário despertou-me ainda maior interesse ao considerar muito justa e extraordinária aquela forma de fazer justiça através daquela exuberante alameda formada por cada uma daquelas inúmeras árvores que sustentavam aos seus pés delas aqueles diminutos lumes e aquelas sumárias inscrições contidas naqueles pequenos retalhos metálicos; por ter sido assim, e assim sentir-me, com grande e contínua atenção, depois de ler todas aquelas informações ali grafadas, fiz esta reflexão:

A seiva que está a circular nos vasos lenhosos de cada um destes frondosos espécimes vegetais, pode levar uma ou outra pessoa mais sensível que por aqui esteja a passar, a recordar do fluxo sanguíneo interrompido nas veias de cada um daqueles heróis que teve a sua vida ceifada nos campos de batalha bem distantes deste sítio…

Por conta desse cenário que suscitou aquela conjectura, três vezes por semana, por lá passei a passar, e cada vez que o fazia, não deixava de reler os nomes próprios daqueles soldados — os ditos inscritos naquelas plaquinhas — assim, por tantas vezes que lá estive, e os li, em um dado momento, sem poder livrar-me daquela alusão, ilusão singular me envolveu, pois, por fugazes instantes — se é que para devaneios há demanda de tempo — vi-me nos campos de batalha ao lado de destemidos soldados durante os seus dias de aflita peleja; assim, nesse conflito envolto pelo pavor, em circunstâncias várias, presenciei exatamente o momento em que a luz dos seus olhos deles se não foi cegada, segada de vez, fora a sua vida deles… Foi assim que enleado por aquele horrendo cenário, ao passar por lá, por dias vários, várias batalhas assisti… Incontáveis mortes presenciei… Ainda que o quisesse, não houve meios para evitar cenas horripilantes. Envolto por essas funestas circunstância, aterrorizado, se tentei salvar alguma vida, êxito nenhum obtive, pois nem mesmo pude deixar de ver o brutal extermínio de cada uma delas; logo, tão somente, restou-me repudiar com toda veemência, aquele delírio, ou seja, deveria o quando antes, livrar-me daquela alucinação que me envolveu naquela mortandade…

Isto já dissera sobre a Europa central, ou antes, isto senti enquanto nessa região permaneci: o primeiro mês do ano de cá — o do Brasil — pode esfriar o ânimo de qualquer brasileiro que queira enfrentar o sétimo mês de lá — o da Itália — pois o calor de julho que envolve esse país, naturalmente, se também aquece as pessoas, crestada é capaz de deixar a mente de algumas delas, quando essas já têm os seus próprios cérebros desprovidos de umidade, quando não, inteiramente ressequidos… E desse nefasto e ígneo evento, talvez, fui vítima, pois, se senti até nas minhas entranhas estranhas sensações de queimaduras provocadas por aquele sol incandescente, os efeitos dessa consequência, mais percebi, quando em um daqueles dias tórridos, ou antes, quando em uma daquelas noites abrasadoras, por grande desconforto que estava a sentir encerrado em meus aposentos, entendi de atender a minha curiosidade; para contemplar essa quase sempre inconsequente vontade, fui rever aquelas plaquinhas, aquelas que quando iluminadas deixavam em maior destaque os nomes daqueles soldados, cujas vidas foram apagadas durante as duas grandes guerras.

Tanto gostei do que ouvira ou vira naquele cenário envolto pelo manto da noite, que por lá, outras vezes desejei muito passar, pois, por tempo indeterminado, lá, quis fazer uma visita após a outra; e a cada vez que “a fazia”, uma afasia aguda turvava-me os sentidos; com efeito, ainda que cindido estivesse o meu discernimento, sentia-me capaz de reconhecer a imensurável justiça que havia em cada um daqueles pontos de luz que estava a iluminar as suscintas informações sobre cada um dos filhos daquele solo. Daquele solo? Sim! Uma vez que isto já fora dito: cada epíteto que ali se encontrava grafado, grifado na memória dos parentes daquele soldado ficara, pois referia-se a algum jovem que nesse lugar nascera, e morreu em algum campo de batalha, talvez, até bem distante dali; agora, nesse sítio, bem longe daquelas áreas cuja morte inundara de sangue, para despertar a atenção de quem por ali passava, pequeninas e cintilantes lâmpadas estavam a luzir em memória de vidas apagadasE mais, mais que o próprio Sol, esses diminutos lumes disseminavam a justiça, pois menos justa é aquela estrela, uma vez que por dispor sempre da sua colossal chama, chama a atenção dos incautos, para induzi-los a prestar reverência a alguns entes humanos que indevidamente, postos às claras, deveriam ficar fora dos domínios dos raios incandescentes que iluminam o nosso planeta; ao agir assim, muita vez, esse astro — o Senhor da Luz — retira das sombras algumas pessoas ofuscadas pelas suas próprias e turvas histórias; por ser assim, com frequência, esse ígneo corpo celeste com seu brilho intenso quase sempre ofusca defeitos de algumas criaturas humanas, visto que essas se vivas ainda estivessem, por conta dos seus atos heroicos não feitos, poderiam ver seus nomes grafados em algum frontispício de algum monumento…

Conforme dissera, quando pela primeira vez, vi aquelas pequeninas placas iluminadas por aquelas diminutas lâmpadas, mais vezes, desejei revê-las; por ter sido assim, naturalmente, durante uma especial noite, fá-lo-ia pela última vez, antes de voltar ao Brasil; todavia, ao tentar realizar essa despedida, fui impedido de levá-la a cabo, pois nesse dia, ou antes, durante essa noite em que fora frustrada a minha intenção, por volta das duas horas, isto se deu:

Ao aproximar-me da primeira árvore — a que seria a última, se eu viesse do Sul a alcançar o Norte — fui impedido por três soldados que se posicionavam logo atrás de alguns cavaletes dispostos em forma de barreira que pudesse impedir o trânsito àquela grande área social reservada aos eventos ao ar livre. Ao perceber a minha aproximação, disse-me um deles:

— Hoje, dia vinte e oito de julho — data por nós a cada ano esperada com alegria — lembra-nos, exatamente o dia em que eclodiu a primeira grande guerra; assim, neste dia, estamos a nos preparar para comemorar o aniversário de um dos nossos comandantes; a ser assim, às pessoas que não foram convidadas a participar dessa reunião, vedado está o acesso a este local, portanto, portando a prudência e a boa educação, por trás desta barreira que delimita o espaço onde esse evento dar-se-á, há de permanecer vossa senhoria.

Estranhei aquela singular comemoração a céu aberto em tão fechada noite, contudo, por acatar aquela ordem recebida, permaneci do lado de fora daquele recinto a observar o que se passava do lado de dentro, uma vez que deveria respeitar aqueles entraves de permeio; ainda assim, com aguçada atenção, isto presenciei:

Sob dez barracas de campanha dispostas de maneira bem ordenada, naquela grande área reservada aos eventos ao ar livre, em cumprimento das ordens ditadas por um oficial que se orientava por um “vade-mécum” de cerimonial militar do exército, dispuseram cadeiras, e mesas guarnecidas com louças, talheres e copos. Percebi que cinco daquelas tendas apresentavam características diversas das cinco outras, como que fins distintos estivem reservados para cada um desses dois conjuntos de abrigos. Movido por forte curiosidade sustentada pela força dos meus olhos — ainda que permanecesse fora dos limites daquela “festa” — inicialmente através de gestos, pedi explicações a um dos três militares que agora ignoravam a minha presença.

Qual a causa da distinção entre esses conjuntos de barracas?

Respondeu-me ele:

— Aqueles cinco abrigos mais próximos de nós que está a ver, e tudo que sob eles se encontra, compõem parte dos nossos utensílios usados durante a primeira grande guerra; já as cinco outras barracas, e tudo que o senhor observa sob a sua proteção delas, são objetos militares usados durante a segunda guerra mundial.

Encantado por esse cenário, fui subjugado por uma frouxa convicção quanto ao meu estado de consciência; ainda assim, se julguei razoável pensar que estava acordado; de acordo dado entre essa insólita contingência e o meu próprio discernimento, vi-me forçado a admitir que muita vez, quando a própria crença se vê em dúvida, para dirimir essa incerteza, a nossa natureza ao notar diante de si vias livres e eferentes deixa de ser indecisa para tornar-se coerciva… Com essa postura inflexível, invariavelmente, nosso corpo nos impõe as suas mensagens… Dessa forma, para atenuar a minha tibiez mental ou até para continuar com o meu discernimento cindido, em um ato contínuo, porém, segmentado por intervalos regulares e fugazes de tempo, fechei e abri os olhos; com efeito, fiquei às escuras por um tempo diminuto, que se fosse maior, teria me impedido de ver de onde saíram para ocupar todo aquele espaço, dois grandes grupamentos militares que estavam a envergar as suas fardas de gala. Contingente de fardas de gala? Sim! Um deles constituído por militares que se envolveram na primeira grande guerra, e o outro, por outros militares, que da segunda grande guerra, bem poderiam ter participado…

A curiosidade quando muito cresce, ainda que seja devagar, a divagar nos leva sem demora; assim, por desejar ver mais além do que já estava a ver, indaguei àquele militar de modos graves a quem já me dirigira antes:

Quem são vocês? Recorreram a quais meios para chegar até aqui? Que comemoração inusitada é esta que está a acontecer em horário e lugar não menos singulares?  

— Por parte — disse-me esse soldado — dar-te-emos todas as respostas para todas as tuas indagações. Logo em seguida, antes que esse militar algo a mais me dissesse, alguém que se encontrava mais à distância de nós, o interrompeu com estas palavras:

— Diga isto a esse irmão indiscreto: aqui estamos envolvidos por uma grande corda de oitenta e um nós, e daqui sairemos, através de uma grande escada. Ao perceber que eu bem ouvira essa afirmação baça, o militar que mais de perto me dava atenção, não viu necessidade para repeti-la, assim, preferiu dizer-me isto:

Sou o sargento Giuseppe Cattaneo, nasci aqui em Milão, no dia quatorze de setembro de 1896. Se não tivessem retirado do meu corpo as minhas duas dog tags¹ exatamente no dia quinze de maio de 1916, logo após a minha morte, ainda os verias em meu peito.

Não bastasse tão formidável situação com a qual me envolvera; com essa resposta — se é que tal situação estava a acontecer, ou, se é que a minha mente me propiciara este ou qualquer outro raciocínio — enleados ainda mais ficaram os meus sentidos; o certo é que esta dúvida em mim prevaleceu: presenciei este fato, ou fui envolvido por uma formidável alucinação? Ainda mais embaraçado fiquei com esta sequência de palavras do sargento Cattaneo: — este militar, à minha direita, é o soldado Giovanni Ferrario que nasceu em três de junho de 1877 e faleceu um dia após a minha morte; este outro é o também soldado Paolo Cogliati que nasceu um ano antes de mim, em dezoito de setembro de 1895, e faleceu no dia dois de outubro de 1918, portanto, um mês antes de alcançarmos o término daquela grande barbárie que se deu em onze de novembro de 1918.  Diante dessa portentosa situação, isto pensei: de um sonho, posso sair à realidade se eu alcançar a outra entrada deste espaço? Tão logo pus termo a esse pensamento, caminhei à outra extremidade daquela área social — a do local onde se dava aquela formidável festa — ao chegar lá, vi-me diante de três militares; antes que o meu último passo me pusesse frente a frente com eles, um deles me disse isto:

— Alto! Detém-te! Neste espaço não podes adentrar-te; a partir desta cancela, não permitimos o trânsito de pessoas que não compõem o nosso destacamento. E prosseguiu esse altivo militar com estas palavras: — Eu sou o tenente Enrico Verpilio! Estes dois amigos meus que estão ao meu lado, respectivamente, são os sargentos Gaspare Carsenzuola e Vittorio Re; eles e eu, juntamente com todos os militares que aqui podes ver, estamos a comemorar o aniversário do nosso comandante — o coronel Vittorio Gogliati — o comandante do nosso batalhão de infantaria. Se quiseres vê-lo, ei-lo bem ali, à tua esquerda; ele é aquele oficial loiro e mais alto que está a sair daquela barraca. E continuou a falar aquele militar:

— Nosso comandante no dia oito de julho de 1943 aos 34 anos de idade, entre nós — os seus comandados — bem poderia ter comemorado o seu aniversário, não fosse a impiedosa Morte envolta por uma funesta coincidência, ou sob o jugo de uma mordaz inconfidência se encontrasse disposta a ceifar brutalmente a sua vida dele exatamente naquele momento de comemoração natalícia. Conforme sabes, hoje também é dia oito, o mês é julho, e o ano 2011, logo, exatamente nesta data, estamos a comemorar o seu aniversário dele; com essa mesma intenção, já o fizemos nesse dia, e nesse mês, porém em 1977; e novamente, o faremos em 2045; e a cada trinta e quatro anos, exatamente neste dia, e neste mês encontrar-nos-emos mais uma vez, neste mesmo lugar.

Despedindo-se de mim, esse oficial, disse-me ainda estas palavras:

— Estás dispensado! Por favor, afasta-te alguns passos deste lugar.

Dispus-me a retirar daquele sítio portentoso, porém, o fiz sem pressa, e sem dar as costas àquele militar; desse modo, fui me afastando passo a passo, mas, não sem antes, deixar que entre aqueles dois contingentes fardados ficassem vigilantes por mais alguns instantes os meus olhos; por agir assim, entre os demais militares que estava a observar, destacou-se-me aos olhos um determinado oficial, ou melhor, devo dizer, realçou-se-me às vistas em cada uma das lapelas da túnica desse militar uma cruz branca bordada, e mais, para mais a minha admiração incitar-se, logo abaixo da região do ombro esquerdo desse oficial, inseridos sobre a face externa da manga do seu uniforme, confeccionados com destacado primor encontravam-se dois emblemas bem precisos, quais sejam a bandeira do Brasil e um pequeno retângulo com estas características: com os seus cantos quebrados delimitava-se esse emblema por dois distintos pares de lados — um deles de oito centímetros e o outro de seis — esse pequeno retângulo encerrava em seu fundo amarelo circundado por um halo vermelho, a imagem estilizada de uma cobra na cor verde fumando um cachimbo vermelho do qual saiam tênues fios brancos que estavam a representar a fumaça resultante da queima do fumo; na parte superior dessa figura, inseria-se outro pequenino retângulo com lados aproximadamente de seis e dois centímetros com seus cantos superiores também quebrados, onde sobre um fundo azul, bem se destacava a palavra Brasil grafada na cor branca.

Por tal visão, muito mais espertou-se a minha curiosidade e mais se apagou o meu senso de obediência, assim, de forma incisiva, voltei-me ao oficial que me despedira, para lhe dizer isto:

Posso falar com aquele oficial?

— Referes-te a qual deles? Respondeu-me o meu interlocutor, quando, então, mais explícito deixei o meu pedido, por estas palavras mais terminantes:

Desejo muito falar com aquele senhor; aquele que neste momento, está a falar com o coronel Gogliati.

Assim disse-me aquele oficial: — tem a bondade, aguarda um instante, vou avisá-lo que o senhor tenciona dirigir-se a ele.

Pouco esperei para situar-me diante daquele militar; ao fazê-lo, fiquei estarrecido ao confirmar que estava frente a frente com um compatriota meu — o capitão capelão Antônio Álvares da Silva² — Se alguma palavra lhe dirigi, não me lembra agora, mas, algum diálogo houve, pois bem me recordo destas palavras suas dele:

— Filho! Não te assustes! Não te preocupes em dar explicações sobre os momentos que estiveste entre nós, pois, neste país, não há ninguém que possa compreender-te, e de mais a mais, se nas terras do Velho Mundo não há pessoas que se dispõem a ouvir-te com prazer, comprazer-te-ás com o silêncio delas… A ser assim, o quanto antes, em paz, volta ao nosso Brasil. Quando lá chegares, encontrarás alguém que bem entenderá o que tens a dizer sobre tudo que ouviste ou viste entre nós…

Tão logo recebi essa bênção, os primeiros alvores se ocuparam em ocultar das minhas vistas todos aqueles atores, e todo aquele cenário onde esses atuaram… Depois dessa ocorrência, esperei contar com sol para que tudo ficasse às claras, mas, quando esse se expôs, para o meu gaudio, aquela embaraçosa realidade não se ofuscou com luz dessa estrela maior… Por ter sido assim, tive mais esta certeza: quando a próxima noite que ainda está para nascer, tornar-se velha, de novo, aqui voltarei… Assim, com pesar, dispus-me a voltar para casa. Tão logo lá cheguei, com alguma indisposição, ao pai da minha neta relatei o fato ocorrido naquela noite passada, ou antes, tentei descrever aquele prodígio transcorrido durante as primeiras horas do dia que ainda estava em curso. Se espantadíssimo, com estas palavras, o esposo da minha filha interrompeu-me, antes que eu pudesse dizer-lhe o que vira e ouvira, sem dúvida, só poderia eu dizer que tentei fazer aquela descrição…

— Se de uma mente fantástica — quando não fanática — esse devaneio aluir-se pode, pôde, mais uma vez, tornar-se extremamente embaraçoso à nossa sociedade, pois desde o final de julho do ano de 1977, por meses a fio, essa história perturbadora deixou todo nosso país constrangido, quando não, preocupadíssimo, posto que exatamente há trinta e quatro anos, duas pessoas — dois senhores — relataram ter presenciado essa formidável festa, ou antes, esse grotesco e fictício encontro de militares; e agora, vem alguém que bem conheço afirmar que também o assistiu? Desmedida repercussão teve esse fantasioso relato, que envolveu até o nosso exército, e agora vens tu arrancá-lo do passado para que no presente, essa grotesca história recrudesça entre nós?

E mais isto disse o aflito esposo da minha filha:

— Eu particularmente, conheço essa história absurda; ela é fruto da imaginação de algumas pessoas que não se encontravam cônscias de si, ou de alguém que estava com a mente tisnada pelo nosso calor de julho… Ainda assim, essa pantomima burlesca radicou-se no imaginário da nossa gente, logo, é capaz de acender-se de tempos em tempos.

Julgando necessário mais falar, destas palavras não desistiu o injuriado pai da minha neta:

Digo-te mais, por tão bem conhecer esse disparate, poupo-te tempo, ao relatar estas próximas palavras tuas, às quais, só darei ouvido, se no olvido as lançares para sempre: 

— Pessoalmente, conheci o coronel Vittorio Gogliati ao lado dos seus comandados dele.

E mais, já que és brasileiro, dir-me-ás mais isto:

— Deram-me notícias da festa passada, e anunciaram as que estão por vir; por fim, conversei com um oficial do meu país.

E mais isto disse o meu aflito interlocutor:

— A ser assim, e que diferente não seja, logo, logo, ou antes, neste momento, peço-te: não te exponhas ao ridículo, não relates essa fantasia a mais ninguém.

Essa férrea oposição à minha narração, ou antes, essa ígnea objeção à minha convicção sobre a ocorrência daqueles encontros — o dos militares entre si, e o meu com eles — não foi capaz de demover-me daquele propósito, qual seja mais uma vez, haveria de revir aqueles soldados, ainda que fosse a minha última ação naquele formidável sítio onde os vira, e com eles conversara… 

Se quase sempre, a certeza maior à menor dúvida não concede vez, o esposo da minha filha — agora menos cético — dispôs-se a acompanhar-me até aquele espaço onde eu estivera — ou assim devo dizer — onde, de forma cristalina, eu vi aqueles dois destacamentos militares que estiveram nas frentes de batalhas durantes as duas grandes guerras. Pois bem, depois desse entendimento, seguiu-se este evento:

Agora acompanhado pelo pai da minha neta, sob o manto da primeira noite que estava a preceder a anterior — a que serviu de cenário àquela formidável reunião — de volta àquele fabuloso sítio encontrava-me; tão logo nesse espaço chegamos, ao menos eu, isto observei: 

Ao lado de um automóvel militar, deparei-me com quatro soldados; de imediato, três deles reconheci, pois, antes com eles estivera, e com dois deles conversara durante a noite passada; tratavam-se essas pessoas do padre Antônio Álvares da Silva — o Frei Orlando, o soldado Giovanni Ferrario, e o tenente Enrico Verpilio. Ao aproximar-me desses militares, se os meus passos o soldado desconhecido inclinou-se a deter, de ter sucesso com essa operação, foi ele dissuadido por estas palavras do meu compatriota — o Frei Orlando:

— Vejo que por aqui estás mais uma vez; se para fazê-lo, real motivo houve, ouve, mais uma vez, o que a ti já dissera antes. 

— Filho! Não te assustes! Não te preocupes em dar explicações sobre os momentos que estiveste entre nós, pois, neste país, não há ninguém que possa compreender-te, e de mais a mais, se nas terras do Velho Mundo não há pessoas que se dispõem a ouvir-te com prazer, comprazer-te-ás com o silêncio delas… A ser assim, o quanto antes, em paz, volta ao nosso Brasil. Quando lá chegares, encontrarás alguém que bem entenderá o que tens a dizer sobre tudo que ouviste ou viste entre nós…

Enquanto esse segundo encontro vigia, vigia atento tornara-se o meu genro, pois, com singular empenho, disse-me ele estas palavras ao aproximar-se de mim: 

— O que estás a fazer no centro desta grande e silenciosa área? Se ninguém além de ti, estou a ver, e nada ouço, ouso dizer isto: encontro-me em dúvida, pois, enquanto à distância, observava-te; ouvi, ou vi alguém que poderia ser tu. Por ter sido assim, entendi que estavas a manter um diálogo com alguma pessoa que tão somente, tu viste… 

 

¹ — As Dog tags são singulares plaquetas de identificação usadas por militares; recebem esse nome por se assemelharem, em função, com as coleiras usadas em cães (do inglês, dog tags); essas plaquetas servem principalmente à identificação de soldados mortos ou feridos; assim, cada militar há de portar em si duas delas; elas devem ficar sempre atadas ao seu corpo dele; entretanto, caso ocorra a sua morte dele, uma delas deve ser removida desse cadáver; já a outra — a segunda — através da pequena corrente que a sustenta, deve ser atada no dedão do pé daquele soldado morto; naturalmente essas dogs tags devem bem preservadas, pois só assim facilitarão com segurança, a identificação daquele defunto. Caso um militar porte algum caráter que requeira atenção especial, uma terceira plaqueta vermelha contendo as informações atinentes a essa ocorrência singular, deve ser posta juntamente com as duas dog tags usuais.

As informações contidas nessas plaquetas são as seguintes: na primeira linha, encontra-se o nome do país de origem do militar; na segunda, figura o nome completo do militar, podendo ter iniciais abreviadas; na terceira linha, bem expresso, há de ficar o número de ordem desse soltado, e o número da Região Militar onde ele se alistou; na quarta linha, há à frente de um “T” (indicativo de vacina antitetânica) o ano em que a mesma foi recebida pelo militar, e à direita desse ano, há a sua tipagem sanguínea dele — à época das duas grandes guerras não havia conhecimento sobre o fator Rh — finalmente, na última linha e ao centro, está gravada a patente desse referido militar.

 

² — Antônio Álvares da Silva, o Frei Orlando (Morada Nova de Minas13 de fevereiro de 1913 — Bombiana, Itália20 de fevereiro de 1945), foi um padre e militar brasileiro, tendo servido como capitão capelão do Exército Brasileiro.

Natura mutari non potest*

 

Toda e qualquer manifestação vital ao expressar-se, antes há de fundar-se em um lastro genético que lhe é inerente.

Todas e quaisquer ações educativas oferecidas a uma determinada pessoa, tão somente se firmam na oferta de ferramentas acompanhadas dos seus respectivos manuais de instruções ao seu uso. Esse discípulo que está em formação, para poder recebê-las, antes há de ter mãos próprias e apropriadas para apreendê-las; só assim, tornar-se-á apto para manuseá-las. Evidentemente, para compor a formação desse educando, externos à sua estrutura gênica há fatores que advém do meio adventício de onde ele provém; apesar da existência desses fatores não subjugar-se à vontade desse discípulo, os resultados das interações entre eles, são sentidos, interpretados, rejeitados ou apreendidos sob reações singulares desse aprendiz; a ser assim, com palavras diferentes, porém com os mesmos valores semânticos mantidos, seguramente, podemos afirmar que as nossas reações às influências que nos impinge o meio externo — o nosso habitat — invariavelmente, fundam-se naquele mesmo substrato genético inerente a quaisquer entes vivos que há; logo, tenhamos isto em mente: ainda no ventre materno, naturalmente, antes que fossemos dados à luz, o nosso processo de aprendizagem já se encontra sob influências epigenéticas recebidas nesse espaço — o intrauterino — primeiro espaço que se conforma com a definição de habitat; por ser esse meio provisório, importância menor não há de ter, pois, se por ele não passarmos bem, mal seremos conduzidos durante a nossa estada em nosso último e definitivo espaço, qual seja o meio onde nos encontramos ao lado dos nossos semelhantes com os quais nos interagimos na partilha de informações que sustentam as nossas vidas; essa sequência será necessária e contínua ao ente humano, e se estenderá até o seu último momento, antes que ele não mais possa sustentar o seu próprio corpo… A ser assim, esse ente, no decorrer de toda a sua existência, e a cada momento, julgando-se apto para tornar-se pessoa, haverá de encontrar ao seu dispor, ferramentas e matéria prima, que necessariamente, deverão ser postas ao seu alcance, para que ele tenha êxito na consecução do seu trabalho, ou seja, na consecução do seu autoprojeto, não obstante, esse desígnio inexoravelmente inacabado há de ficar, uma vez que desde a sua concepção, todo e qualquer ente humano está a ser, e em nenhum momento, deixará de fazê-lo…

E mais isto digo:

Se considerarmos que “não se pode mudar a natureza” — “Natura mutari non potest” — podemos repetir estas palavras de Platão: “Ninguém é mau por sua vontade, mas o mau torna-se mau por alguma depravada disposição do corpo e por um crescimento sem educação, e essas coisas são odiosas a cada um e lhe acontecem contra a sua vontade”; a ser assim, se validarmos essas palavras, admitidas poderão ser mais estas: “aquele que o bem pode aprender, apreender o mau se escusa… Com efeito, nenhuma pessoa à conta das suas próprias limitações, dar conta a outrem ninguém, não carece…”

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A Morte da Boneca de Pano

Daquele ano, encerrava-se o último mês; desse, o sol que nos iluminava, era o vigésimo quinto; assim, se naquele momento, comemorávamos o Natal, na tal divina manjedoura nascera o Filho de Deus; essa crença estava a sustentar a nossa fé…

Nesse dia, estávamos bem distantes do início de uma longa jornada — toda feita sobre o lombo de animais de sela — Por ter sido assim, ao alcance de um merecido descanso, se já nos víamos, vimos também naquele momento, quão tão bem se encontrava a nossa disposição física, pois se necessário fosse — seríamos capazes — nós os quatro amigos — de estender os nossos passos bem mais além do nosso ponto de partida, quando então, por necessidade premente, a um justo e devido repouso teríamos que recorrer…

Por volta das dez horas, a três ou quatro quilômetros depois de passarmos por um pequeno povoado, alcançamos um rapazinho; estava ele a cavalo; marchava no sentido que estávamos  a seguir; sua cavalgadura, por bem conhecer o caminho, nesse não encontrava dúvidas que pudessem mesclar-se com duas certezas suas dela, quais sejam, se de volta à sua casa estava, lá à sua espera encontraria pasto farto e falta de água fresca não teria, assim, com esse alento, a lentos e pesados passos, suportava o seu senhor que mal portava em si a sua própria e pesada dor…  Ele — o rapazinho — de corpo largado sobre a sela, de cabeça baixa, estava a elevar dores aos céus, em busca de alívio, pois, na Terra, mitigá-las não havia quem pudesse fazê-lo… Assim, estava a caminhar e chorar; contido em seu peito partido, o seu choro era daqueles que sai dos olhos tristes de quem as lágrimas lavaram os últimos vestígios da esperança de ver mais uma vez o sorriso de alguém, que de repente, tão cedo partiu… Ao percebermos sua tristeza, a sua causa desejamos saber, logo, perguntamos-lhe:

— Moço!  O que te acontece?

O rapaz, já acanhado pela sua própria natureza, deixaram-no ainda mais enleado as suas próprias lágrimas dele; por ser assim, assim, com a voz embaraçada, ele nos respondeu:

— Hoje, ao amanhecer, perdi a minha irmãzinha; por conta disso, essa notícia fui dar à minha avó que mora no povoado, agora, já estou de volta à minha casa.

No mesmo sentido, e ao lado daquele jovem angustiado que estava a caminhar continuamos. Não mais que a uma hora adiante, chegamos a um pequeno casebre à beira do caminho; à porta da pequenina casa, já se encontravam algumas pessoas; desoladas, lá estavam para despedir-se da pequena morta…

Naquele lugar, se não tínhamos plano para dos nossos animais apear, a pear nossos movimentos estava a desocupada curiosidade, contudo, quem livre se encontra, quase sempre, não dispensa companhia, assim, para acompanhar-nos, estava presente e disposta a solidariedade — aquela que se posta sempre às margens dos caminhos, para interromper a marcha do sofrimento… Sofrimento que a cavalgar a sua besta alada, não se esbarra no tempo, e ao espaço nenhum valor atribui, pois em qualquer mísero casebre que queira entregar a dor, não hesita em lá entrar com todo o seu furor…

Adentramo-nos na pequena casa; tratava-se de uma construção rústica e frágil, toda coberta por folhas de Buriti* que se apoiavam sobre varões roliços de alguma madeira facilmente encontrada naquela região; essa moradia por ser malfeita, apoiava-se em um piso de chão batido circundado por paredes de pau a pique mal aprumadas; contudo, essas mais ásperas mostrar-se-iam se não fossem barreadas com tabatinga**… Ao cruzarmos a porta de entrada dessa humilde cabana,  já demos à pequenina sala onde jazia o pequeno corpo de uma criança que já estava a ser velado; frágil criança fora! Não mais que doze anos de idade vivera, mas, mais de oito, ninguém lhe daria… Em uma das paredes desse cômodo, fora há tempo fixada uma imagem de São Vicente de Paulo estampada em papel e emoldurada em um tosco caixilho de madeira; do seu lado oposto dela, também presa à parede, encontrava-se uma folhinha — daquelas, das quais a cada dia, retira-se uma pequenina página — essa ao perder-se, deixa de indicar o dia velho que se findou, para dar à próxima pagela a vez de anunciar em si o novo dia que se iniciou. Em um dos cantos desse singelo cômodo, sobre uma forquilha, apoiava-se um pote de barro; nesse fora inserida uma torneira gasta ou mal ajustada, pois sem cessar, gota a gota, estava a perder a água que à vida dá o sustento sem parar. Ao centro da sala, sobre uma mesa forrada com um pano branco um tanto enodoado, estendido, encontrava-se o corpo daquela pequena criança. Escassas flores, já quase murchas, colhidas naquele mesmo sítio castigado pela seca, mal ocultavam o vestidinho de chita estampado de motivo miúdo que estava a cobrir o corpo frágil daquele pequeno cadáver. Ao lado da sua cabeça dele, indiferentes àquele dia de luto, duas tristes velas se esvaíam entre o cheiro daquelas flores mortas, enquanto mal iluminavam a face pálida daquela defuntinha; seus cabelos bem esparsos emoldurava o seu descorado rostinho que deixava em maior destaque o seu narizinho descarnado; seus olhos sem brilho, quase que sumidos estavam; um tênue filete de sangue coagulado mais se acentuava entre os seus lábios finos e semiabertos. No rosto desse anjinho sem vida, ou antes, na sua face ceréa, séria estava a expressão de uma infância tão cedo ceifada pela cruel morte… Suas mãozinhas secas, cruzadas sobre o peito, seguravam uma pequena boneca de pano. Por alguns instantes, com os olhos em lágrimas, fiquei a olhar para esses dois corpinhos inanimados, e logo pensei: que insensível é o Papai-noel? Pois dias antes, deixou de considerar que a morte não se move a rogos, assim, a alguém desta casa,  se quisesse dar algum presente, presente aqui, neste dia, não deveria estar, pois aqui só seria bem recebido, se há meses, ou até há anos, tivesse comparecido… Agora, já é tarde, esta criança se pouco tempo teve para viver, quase nada recebeu, e agora, morta, encontra-se abraçada com a sua boneca que nem mesmo chegou a viver na imaginação de uma menina.

Naquela sala, todos choravam; tudo chorava; São Vicente, com uma criança nos braços, segurava outra pela mão, e ainda, velava por outra, que agora morta, despedia-se da Terra, para viver no Céu. O pote, no compasso das horas, gota a gota, ia chorando suas lágrimas de água doce… +Agora, sobre uma tosca essa, essa defuntinha, alheia ao que estava a passar à sua volta, para o seu próprio alento, inconformada com a sua partida, jamais poderia ver a sua própria mãe tentando mitigar o sofrimento dos seus irmãos que vivos estiveram ao seu lado… O pai desses, com seu corpo largado sobre a Terra, mal podia sustentar a sua própria cabeça; sem forças, naquele momento de aflição, nenhum pensamento conseguiria revelar; velar tão somente o corpo da sua filha desejava; assim, mais que antes, por menos esperar do Céu, não mais chorava, pois dos seus olhos cansados de tanta desventura, com essa perda, de vez, secaram as lágrimas, e mais, do seu coração roubaram a última esperança de ver, em algum outro momento, o sorriso de uma criança que pouco tempo teve para ser a sua filha.

Partimos! Naquela casa tentamos deixar algum alívio, mas, recusaram-no o luto e a miséria que de mãos dadas, por lá, por mais tempo ficariam…

 

* Palmeira (Mauritia vinífera) cujas folhas são usadas para cobertura de casas rústicas, especialmente no meio rural; ainda, dos seus frutos se obtém um óleo rico em caroteno, usado também na culinária doméstica.

 

** Terra composta por argila de variegadas cores; fora e ainda é usada para pintar paredes das residências mais humildes, sobretudo, na zona rural.

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Agora sim…

Não tenho a menor dúvida, vejo que és estulto.

Desta vez, e de vez, tornaste-te incauto, pois, nesta página, à tua esquerda, entre tantos títulos seguros que há sob teus olhos, em ti, nenhum deles suscitou algum interesse? Creio que não, pois, por menos cautela que estavas a ter se ater lá, quiseste mais.

Navegaste a esmo, pois, ancorares em um porto desconhecido, logo, entre os males que por lá há, podes encontrar uma ou outra causa de tenesmo…