um ente que está a ser ao Ser…

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A Morte da Boneca de Pano

Daquele ano, encerrava-se o último mês; desse, o sol que nos iluminava, era o vigésimo quinto; assim, se naquele momento, comemorávamos o Natal, na tal divina manjedoura nascera o Filho de Deus; essa crença estava a sustentar a nossa fé…

Nesse dia, estávamos bem distantes do início de uma longa jornada — toda feita sobre o lombo de animais de sela — Por ter sido assim, ao alcance de um merecido descanso, se já nos víamos, vimos também naquele momento, quão tão bem se encontrava a nossa disposição física, pois se necessário fosse — seríamos capazes — nós os quatro amigos — de estender os nossos passos bem mais além do nosso ponto de partida, quando então, por necessidade premente, a um justo e devido repouso teríamos que recorrer…

Por volta das dez horas, a três ou quatro quilômetros depois de passarmos por um pequeno povoado, alcançamos um rapazinho; estava ele a cavalo; marchava no sentido que estávamos  a seguir; sua cavalgadura, por bem conhecer o caminho, nesse não encontrava dúvidas que pudessem mesclar-se com duas certezas suas dela, quais sejam, se de volta à sua casa estava, lá à sua espera encontraria pasto farto e falta de água fresca não teria, assim, com esse alento, a lentos e pesados passos, suportava o seu senhor que mal portava em si a sua própria e pesada dor…  Ele — o rapazinho — de corpo largado sobre a sela, de cabeça baixa, estava a elevar dores aos céus, em busca de alívio, pois, na Terra, mitigá-las não havia quem pudesse fazê-lo… Assim, estava a caminhar e chorar; contido em seu peito partido, o seu choro era daqueles que sai dos olhos tristes de quem as lágrimas lavaram os últimos vestígios da esperança de ver mais uma vez o sorriso de alguém, que de repente, tão cedo partiu… Ao percebermos sua tristeza, a sua causa desejamos saber, logo, perguntamos-lhe:

— Moço!  O que te acontece?

O rapaz, já acanhado pela sua própria natureza, deixaram-no ainda mais enleado as suas próprias lágrimas dele; por ser assim, assim, com a voz embaraçada, ele nos respondeu:

— Hoje, ao amanhecer, perdi a minha irmãzinha; por conta disso, essa notícia fui dar à minha avó que mora no povoado, agora, já estou de volta à minha casa.

No mesmo sentido, e ao lado daquele jovem angustiado que estava a caminhar continuamos. Não mais que a uma hora adiante, chegamos a um pequeno casebre à beira do caminho; à porta da pequenina casa, já se encontravam algumas pessoas; desoladas, lá estavam para despedir-se da pequena morta…

Naquele lugar, se não tínhamos plano para dos nossos animais apear, a pear nossos movimentos estava a desocupada curiosidade, contudo, quem livre se encontra, quase sempre, não dispensa companhia, assim, para acompanhar-nos, estava presente e disposta a solidariedade — aquela que se posta sempre às margens dos caminhos, para interromper a marcha do sofrimento… Sofrimento que a cavalgar a sua besta alada, não se esbarra no tempo, e ao espaço nenhum valor atribui, pois em qualquer mísero casebre que queira entregar a dor, não hesita em lá entrar com todo o seu furor…

Adentramo-nos na pequena casa; tratava-se de uma construção rústica e frágil, toda coberta por folhas de Buriti* que se apoiavam sobre varões roliços de alguma madeira facilmente encontrada naquela região; essa moradia por ser malfeita, apoiava-se em um piso de chão batido circundado por paredes de pau a pique mal aprumadas; contudo, essas mais ásperas mostrar-se-iam se não fossem barreadas com tabatinga**… Ao cruzarmos a porta de entrada dessa humilde cabana,  já demos à pequenina sala onde jazia o pequeno corpo de uma criança que já estava a ser velado; frágil criança fora! Não mais que doze anos de idade vivera, mas, mais de oito, ninguém lhe daria… Em uma das paredes desse cômodo, fora há tempo fixada uma imagem de São Vicente de Paulo estampada em papel e emoldurada em um tosco caixilho de madeira; do seu lado oposto dela, também presa à parede, encontrava-se uma folhinha — daquelas, das quais a cada dia, retira-se uma pequenina página — essa ao perder-se, deixa de indicar o dia velho que se findou, para dar à próxima pagela a vez de anunciar em si o novo dia que se iniciou. Em um dos cantos desse singelo cômodo, sobre uma forquilha, apoiava-se um pote de barro; nesse fora inserida uma torneira gasta ou mal ajustada, pois sem cessar, gota a gota, estava a perder a água que à vida dá o sustento sem parar. Ao centro da sala, sobre uma mesa forrada com um pano branco um tanto enodoado, estendido, encontrava-se o corpo daquela pequena criança. Escassas flores, já quase murchas, colhidas naquele mesmo sítio castigado pela seca, mal ocultavam o vestidinho de chita estampado de motivo miúdo que estava a cobrir o corpo frágil daquele pequeno cadáver. Ao lado da sua cabeça dele, indiferentes àquele dia de luto, duas tristes velas se esvaíam entre o cheiro daquelas flores mortas, enquanto mal iluminavam a face pálida daquela defuntinha; seus cabelos bem esparsos emoldurava o seu descorado rostinho que deixava em maior destaque o seu narizinho descarnado; seus olhos sem brilho, quase que sumidos estavam; um tênue filete de sangue coagulado mais se acentuava entre os seus lábios finos e semiabertos. No rosto desse anjinho sem vida, ou antes, na sua face ceréa, séria estava a expressão de uma infância tão cedo ceifada pela cruel morte… Suas mãozinhas secas, cruzadas sobre o peito, seguravam uma pequena boneca de pano. Por alguns instantes, com os olhos em lágrimas, fiquei a olhar para esses dois corpinhos inanimados, e logo pensei: que insensível é o Papai-noel? Pois dias antes, deixou de considerar que a morte não se move a rogos, assim, a alguém desta casa,  se quisesse dar algum presente, presente aqui, neste dia, não deveria estar, pois aqui só seria bem recebido, se há meses, ou até há anos, tivesse comparecido… Agora, já é tarde, esta criança se pouco tempo teve para viver, quase nada recebeu, e agora, morta, encontra-se abraçada com a sua boneca que nem mesmo chegou a viver na imaginação de uma menina.

Naquela sala, todos choravam; tudo chorava; São Vicente, com uma criança nos braços, segurava outra pela mão, e ainda, velava por outra, que agora morta, despedia-se da Terra, para viver no Céu. O pote, no compasso das horas, gota a gota, ia chorando suas lágrimas de água doce… +Agora, sobre uma tosca essa, essa defuntinha, alheia ao que estava a passar à sua volta, para o seu próprio alento, inconformada com a sua partida, jamais poderia ver a sua própria mãe tentando mitigar o sofrimento dos seus irmãos que vivos estiveram ao seu lado… O pai desses, com seu corpo largado sobre a Terra, mal podia sustentar a sua própria cabeça; sem forças, naquele momento de aflição, nenhum pensamento conseguiria revelar; velar tão somente o corpo da sua filha desejava; assim, mais que antes, por menos esperar do Céu, não mais chorava, pois dos seus olhos cansados de tanta desventura, com essa perda, de vez, secaram as lágrimas, e mais, do seu coração roubaram a última esperança de ver, em algum outro momento, o sorriso de uma criança que pouco tempo teve para ser a sua filha.

Partimos! Naquela casa tentamos deixar algum alívio, mas, recusaram-no o luto e a miséria que de mãos dadas, por lá, por mais tempo ficariam…

 

* Palmeira (Mauritia vinífera) cujas folhas são usadas para cobertura de casas rústicas, especialmente no meio rural; ainda, dos seus frutos se obtém um óleo rico em caroteno, usado também na culinária doméstica.

 

** Terra composta por argila de variegadas cores; fora e ainda é usada para pintar paredes das residências mais humildes, sobretudo, na zona rural.

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