Há um bom tempo, soube que o Tempo por nada, nada espera; a ser assim, se esse cruel agente da eversão de tudo que há, não dispõe de tempo para nos atender, entender o que dele pensamos não, naturalmente, não está ao nosso alcance; de mais a mais, para ele qualquer evento é vento que passa para jamais voltar, pois, se há o Devir, de vir ao encontro desse, é o único ofício do próprio Tempo, logo, esse ente da razão não nos pode garantir tempo favorável para cruzarmos o Atlântico… Já que é assim, e jamais poderá ser diferente, sem maior segurança, do novo continente para alcançar o velho mundo, se alguma pessoa desejar sair, terá à sua disposição apenas dois caminhos, quais sejam há de enfrentar nuvens colossais ou águas abissais… Se essa aventura jamais foi fácil, difícil para mim, sempre será opor-me ao Grande Oceano, ou confrontar os céus, pois afeito a feito semelhante, em tempo algum, eu fui… Portanto, portando um temor crônico, se quisesse enfrentar ares descomunais, ou águas titânicas, dependeria no mínimo de um grande e bem definido motivo… A vista disso, se esse risco eu quisesse correr, recorrer a segunda via, não seria a minha primeira inclinação, pois de alguém que a transpusera, recebi esta advertência: ao encontrar-se no ocidente, se quiser alcançar o oriente, oriente-se no sentido oeste-leste, em seguida, erga a fronte e afronte as águas tenebrosas que se encontram de permeio; entretanto, faça-o sem ater-se à sua superfície delas, pois em nenhum dos seus pontos dela, toma-se pé; mas, mais receio tive, quando aquela pessoa mais isto me disse: +se quiser alcançar o Velho Mundo, através do primeiro trajeto, ou seja, através do céu, o seu próprio medo poderá justificar-se, uma vez que se o ar rarefeito ninguém pode cruzar devagar, divagar enquanto estiver a vagar entre nuvens instáveis que mal sustentam friáveis e passageiras imagens, é impossível, pois apenas com os pés em terra firme, pode-se esmar a esmo…
Se não sou capaz de superar todos os meus temores, ao menos, o medo que sempre tivera às alturas julguei necessário aniquilar o quanto antes, pois, a esperar pelo nascimento do primeiro filho da minha primeira filha já estava eu há alguns bons meses, ou até, há anos. Assim, se o tempo está sempre a rugir, agir logo depois do nascimento dessa criança, seria a minha primeira e imediata iniciativa, pois se desejasse conhecer aquele novo descendente meu, só poderia fazê-lo, se vencesse o espaço que separa os dois mundos, o seja, o novo e o velho continentes. Para alcançar esse intento, haveria antes de extinguir aquele velho receio arraigado no seio da minha alma; entretanto, maior estímulo não teria para aniquilar aquela fobia, se pudesse fazer acepção entre os dois gêneros que há para distinguir netos, quais sejam os gêneros feminino e o masculino, pois, só teria interesse por esta ou aquela dileção, se antes pudesse dissuadir dos seus propósitos o acaso, caso esse ente da razão haja e aja…
Tempo razoável esperei para consumar aquele desejo — o de tornar-me avô — pois, aguardei por cinco anos até que um primeiro rebento do meu já maduro galho houve por bem eclodir. Enquanto esperava por esse evento, maior tranquilidade não encontrei, pois, de antemão, se isto da minha mente não fugia, fulgia a todo momento nos meus pensamentos: para conhecer o descendente primogênito da minha filha primogênita, mais cedo ou mais tarde, hei de cruzar o Atlântico…
Depois de passado aquele longo tempo, se o meu velho temor da minha essência não foi extirpado, ou ao menos por ela relevado, revelado isto aos meus netos, algum dia deixarei: se aquele colosso hídrico jamais fugiu da minha fantasia demente, de mente sã, quando me encontro na iminência de partir à Europa, ainda assim, durante inquietantes sonhos, afogo-me nas águas do Atlântico… Se isso sempre acontece, antes que chegasse aquele momento — aquele mais esperado pela minha filha — com insegurança, em terra firme permaneci do lado de cá, deixando de lá o desconhecido e velho Mundo pois de permeio continuava o Grande Oceano. Só recentemente, mesmo depois de saber que nascera a minha primeira netinha, sem pressa, ainda estava a aguardar que em meu próprio fuste fluísse com mais vigor uma nova seiva, pois, para conhecer aquele recém-nascido, ou antes, para alcançar as terras situadas além-mar, dependia de coragem… Assim, só depois de assenhorar-me de uma denodada disposição, minha esposa e eu fomos à Itália conhecer e receber em nossos braços uma frágil criança não menos forte que as demais outras de seis meses de idade; entretanto, já nascera com força suficiente para livrar um novo avô daquele velho medo às alturas e às profundezas… Ao chegar àquelas terras, logo de início, não me acomodei com a temperatura que as envolvia; posto que no meu país, somente um calor fora de época poderia aquecer o sétimo mês do ano que por lá se encontrava incandescente a ponto de deixar quase que em chamas os próprios Alpes… Por conta dessa realidade, se no calendário civil se viu o inverno, o inferno bem mais, ou mais bem aquecido sentir-se-ia sob aquele ígneo clima… Assim, ainda que houvesse necessidade, se eu ousasse ajustar o meu relógio de pulso em função daquela aberração térmica, frustrar-me-ia, pois confuso com o fuso horário daquela região ficaria cada um dos ponteiros químicos do meu ciclo circadiano, portanto, definitivamente, isso eu não fiz, pois só poderia fazê-lo, se pudesse um tanto no tempo voltar-me, ou lançar-me bem além daqueles dias abrasadores…
Muito envolvidos ficamos todos nós com aquela criança recém-nascida — a mãe, o pai, os parentes europeus, minha esposa e eu — entretanto, entre tanta gente na fila do envolvimento, planejei postar-me à frente de todas essas pessoas, ou antes, à minha frente, se pudesse, permitiria apenas a minha filha, pois é difícil opor-se à mãe, quando diante dos seus olhos dela, está um filho…
Se envolvidos com a nossa neta, os avós ficaríamos por vários dias, entre os nossos afáveis afazeres, por três manhãs de cada semana, enquanto minha filha mais diretamente se ocupava com a sua atividade materna, contraí uma obrigação, qual seja ao consumo doméstico, em torno de oito litros de água potável deveria eu buscar em uma fontana localizada bem próxima da residência que estávamos a ocupar.
A meio caminho por onde eu deveria passar para alcançar esse olho-d’água, havia uma ampla área destinada à realização de eventos ao ar livre; contíguas a esse grande espaço, encontravam-se ordenadas entre si e de forma retilínea várias e frondosas árvores. Para que no presente esses luxuriantes monumentos vivos pudessem compor essa exuberante alameda, há meio século, espaçadas entre si por quatro a seis metros, cuidadosamente, foram plantadas não menos que oitenta pequeninas mudas de uma determinada espécie vegetal pertencente ao gênero Populus. Depois de crescidas, aos olhos dos atentos transeuntes que por ali estavam a passar, tão bem perfiladas encontravam-se essas verdes e vivas colunas de espécimes botânicos, que mais lhes afiguravam postadas, tais quais o fazem os soldados em formação quando estão a aguardar diante de si algum distinto oficial disposto a passar em revista a tropa… E para mais se assemelhar a uma pequena guarnição de militares que se encontrava prestes a receber alguma merecida homenagem — ainda póstuma — ao pé de cada uma dessas árvores, encontravam-se uma minúscula lâmpada ao lado de uma pequena placa de metal; nessa estava gravado o nome de um determinado soldado filho do mesmo município onde aqueles espécimes vegetais estavam a vicejar; além do nome desse militar que perdera a sua vida em algum distante campo de batalha entre tantos que serviram de palco à uma das duas grandes guerras, em destaque, estava talhada a data do seu nascimento dele; o dia da sua morte dele, e por fim, a sua patente militar dele. Esse cenário despertou-me ainda maior interesse ao considerar muito justa e extraordinária aquela forma de fazer justiça através daquela exuberante alameda formada por cada uma daquelas inúmeras árvores que sustentavam aos seus pés delas aqueles diminutos lumes e aquelas sumárias inscrições contidas naqueles pequenos retalhos metálicos; por ter sido assim, e assim sentir-me, com grande e contínua atenção, depois de ler todas aquelas informações ali grafadas, fiz esta reflexão:
A seiva que está a circular nos vasos lenhosos de cada um destes frondosos espécimes vegetais, pode levar uma ou outra pessoa mais sensível que por aqui esteja a passar, a recordar do fluxo sanguíneo interrompido nas veias de cada um daqueles heróis que teve a sua vida ceifada nos campos de batalha bem distantes deste sítio…
Por conta desse cenário que suscitou aquela conjectura, três vezes por semana, por lá passei a passar, e cada vez que o fazia, não deixava de reler os nomes próprios daqueles soldados — os ditos inscritos naquelas plaquinhas — assim, por tantas vezes que lá estive, e os li, em um dado momento, sem poder livrar-me daquela alusão, ilusão singular me envolveu, pois, por fugazes instantes — se é que para devaneios há demanda de tempo — vi-me nos campos de batalha ao lado de destemidos soldados durante os seus dias de aflita peleja; assim, nesse conflito envolto pelo pavor, em circunstâncias várias, presenciei exatamente o momento em que a luz dos seus olhos deles se não foi cegada, segada de vez, fora a sua vida deles… Foi assim que enleado por aquele horrendo cenário, ao passar por lá, por dias vários, várias batalhas assisti… Incontáveis mortes presenciei… Ainda que o quisesse, não houve meios para evitar cenas horripilantes. Envolto por essas funestas circunstância, aterrorizado, se tentei salvar alguma vida, êxito nenhum obtive, pois nem mesmo pude deixar de ver o brutal extermínio de cada uma delas; logo, tão somente, restou-me repudiar com toda veemência, aquele delírio, ou seja, deveria o quando antes, livrar-me daquela alucinação que me envolveu naquela mortandade…
Isto já dissera sobre a Europa central, ou antes, isto senti enquanto nessa região permaneci: o primeiro mês do ano de cá — o do Brasil — pode esfriar o ânimo de qualquer brasileiro que queira enfrentar o sétimo mês de lá — o da Itália — pois o calor de julho que envolve esse país, naturalmente, se também aquece as pessoas, crestada é capaz de deixar a mente de algumas delas, quando essas já têm os seus próprios cérebros desprovidos de umidade, quando não, inteiramente ressequidos… E desse nefasto e ígneo evento, talvez, fui vítima, pois, se senti até nas minhas entranhas estranhas sensações de queimaduras provocadas por aquele sol incandescente, os efeitos dessa consequência, mais percebi, quando em um daqueles dias tórridos, ou antes, quando em uma daquelas noites abrasadoras, por grande desconforto que estava a sentir encerrado em meus aposentos, entendi de atender a minha curiosidade; para contemplar essa quase sempre inconsequente vontade, fui rever aquelas plaquinhas, aquelas que quando iluminadas deixavam em maior destaque os nomes daqueles soldados, cujas vidas foram apagadas durante as duas grandes guerras.
Tanto gostei do que ouvira ou vira naquele cenário envolto pelo manto da noite, que por lá, outras vezes desejei muito passar, pois, por tempo indeterminado, lá, quis fazer uma visita após a outra; e a cada vez que “a fazia”, uma afasia aguda turvava-me os sentidos; com efeito, ainda que cindido estivesse o meu discernimento, sentia-me capaz de reconhecer a imensurável justiça que havia em cada um daqueles pontos de luz que estava a iluminar as suscintas informações sobre cada um dos filhos daquele solo. Daquele solo? Sim! Uma vez que isto já fora dito: cada epíteto que ali se encontrava grafado, grifado na memória dos parentes daquele soldado ficara, pois referia-se a algum jovem que nesse lugar nascera, e morreu em algum campo de batalha, talvez, até bem distante dali; agora, nesse sítio, bem longe daquelas áreas cuja morte inundara de sangue, para despertar a atenção de quem por ali passava, pequeninas e cintilantes lâmpadas estavam a luzir em memória de vidas apagadas… E mais, mais que o próprio Sol, esses diminutos lumes disseminavam a justiça, pois menos justa é aquela estrela, uma vez que por dispor sempre da sua colossal chama, chama a atenção dos incautos, para induzi-los a prestar reverência a alguns entes humanos que indevidamente, postos às claras, deveriam ficar fora dos domínios dos raios incandescentes que iluminam o nosso planeta; ao agir assim, muita vez, esse astro — o Senhor da Luz — retira das sombras algumas pessoas ofuscadas pelas suas próprias e turvas histórias; por ser assim, com frequência, esse ígneo corpo celeste com seu brilho intenso quase sempre ofusca defeitos de algumas criaturas humanas, visto que essas se vivas ainda estivessem, por conta dos seus atos heroicos não feitos, poderiam ver seus nomes grafados em algum frontispício de algum monumento…
Conforme dissera, quando pela primeira vez, vi aquelas pequeninas placas iluminadas por aquelas diminutas lâmpadas, mais vezes, desejei revê-las; por ter sido assim, naturalmente, durante uma especial noite, fá-lo-ia pela última vez, antes de voltar ao Brasil; todavia, ao tentar realizar essa despedida, fui impedido de levá-la a cabo, pois nesse dia, ou antes, durante essa noite em que fora frustrada a minha intenção, por volta das duas horas, isto se deu:
Ao aproximar-me da primeira árvore — a que seria a última, se eu viesse do Sul a alcançar o Norte — fui impedido por três soldados que se posicionavam logo atrás de alguns cavaletes dispostos em forma de barreira que pudesse impedir o trânsito àquela grande área social reservada aos eventos ao ar livre. Ao perceber a minha aproximação, disse-me um deles:
— Hoje, dia vinte e oito de julho — data por nós a cada ano esperada com alegria — lembra-nos, exatamente o dia em que eclodiu a primeira grande guerra; assim, neste dia, estamos a nos preparar para comemorar o aniversário de um dos nossos comandantes; a ser assim, às pessoas que não foram convidadas a participar dessa reunião, vedado está o acesso a este local, portanto, portando a prudência e a boa educação, por trás desta barreira que delimita o espaço onde esse evento dar-se-á, há de permanecer vossa senhoria.
Estranhei aquela singular comemoração a céu aberto em tão fechada noite, contudo, por acatar aquela ordem recebida, permaneci do lado de fora daquele recinto a observar o que se passava do lado de dentro, uma vez que deveria respeitar aqueles entraves de permeio; ainda assim, com aguçada atenção, isto presenciei:
Sob dez barracas de campanha dispostas de maneira bem ordenada, naquela grande área reservada aos eventos ao ar livre, em cumprimento das ordens ditadas por um oficial que se orientava por um “vade-mécum” de cerimonial militar do exército, dispuseram cadeiras, e mesas guarnecidas com louças, talheres e copos. Percebi que cinco daquelas tendas apresentavam características diversas das cinco outras, como que fins distintos estivem reservados para cada um desses dois conjuntos de abrigos. Movido por forte curiosidade sustentada pela força dos meus olhos — ainda que permanecesse fora dos limites daquela “festa” — inicialmente através de gestos, pedi explicações a um dos três militares que agora ignoravam a minha presença.
Qual a causa da distinção entre esses conjuntos de barracas?
Respondeu-me ele:
— Aqueles cinco abrigos mais próximos de nós que está a ver, e tudo que sob eles se encontra, compõem parte dos nossos utensílios usados durante a primeira grande guerra; já as cinco outras barracas, e tudo que o senhor observa sob a sua proteção delas, são objetos militares usados durante a segunda guerra mundial.
Encantado por esse cenário, fui subjugado por uma frouxa convicção quanto ao meu estado de consciência; ainda assim, se julguei razoável pensar que estava acordado; de acordo dado entre essa insólita contingência e o meu próprio discernimento, vi-me forçado a admitir que muita vez, quando a própria crença se vê em dúvida, para dirimir essa incerteza, a nossa natureza ao notar diante de si vias livres e eferentes deixa de ser indecisa para tornar-se coerciva… Com essa postura inflexível, invariavelmente, nosso corpo nos impõe as suas mensagens… Dessa forma, para atenuar a minha tibiez mental ou até para continuar com o meu discernimento cindido, em um ato contínuo, porém, segmentado por intervalos regulares e fugazes de tempo, fechei e abri os olhos; com efeito, fiquei às escuras por um tempo diminuto, que se fosse maior, teria me impedido de ver de onde saíram para ocupar todo aquele espaço, dois grandes grupamentos militares que estavam a envergar as suas fardas de gala. Contingente de fardas de gala? Sim! Um deles constituído por militares que se envolveram na primeira grande guerra, e o outro, por outros militares, que da segunda grande guerra, bem poderiam ter participado…
A curiosidade quando muito cresce, ainda que seja devagar, a divagar nos leva sem demora; assim, por desejar ver mais além do que já estava a ver, indaguei àquele militar de modos graves a quem já me dirigira antes:
Quem são vocês? Recorreram a quais meios para chegar até aqui? Que comemoração inusitada é esta que está a acontecer em horário e lugar não menos singulares?
— Por parte — disse-me esse soldado — dar-te-emos todas as respostas para todas as tuas indagações. Logo em seguida, antes que esse militar algo a mais me dissesse, alguém que se encontrava mais à distância de nós, o interrompeu com estas palavras:
— Diga isto a esse irmão indiscreto: aqui estamos envolvidos por uma grande corda de oitenta e um nós, e daqui sairemos, através de uma grande escada. Ao perceber que eu bem ouvira essa afirmação baça, o militar que mais de perto me dava atenção, não viu necessidade para repeti-la, assim, preferiu dizer-me isto:
— Sou o sargento Giuseppe Cattaneo, nasci aqui em Milão, no dia quatorze de setembro de 1896. Se não tivessem retirado do meu corpo as minhas duas dog tags¹ exatamente no dia quinze de maio de 1916, logo após a minha morte, ainda os verias em meu peito.
Não bastasse tão formidável situação com a qual me envolvera; com essa resposta — se é que tal situação estava a acontecer, ou, se é que a minha mente me propiciara este ou qualquer outro raciocínio — enleados ainda mais ficaram os meus sentidos; o certo é que esta dúvida em mim prevaleceu: presenciei este fato, ou fui envolvido por uma formidável alucinação? Ainda mais embaraçado fiquei com esta sequência de palavras do sargento Cattaneo: — este militar, à minha direita, é o soldado Giovanni Ferrario que nasceu em três de junho de 1877 e faleceu um dia após a minha morte; este outro é o também soldado Paolo Cogliati que nasceu um ano antes de mim, em dezoito de setembro de 1895, e faleceu no dia dois de outubro de 1918, portanto, um mês antes de alcançarmos o término daquela grande barbárie que se deu em onze de novembro de 1918. Diante dessa portentosa situação, isto pensei: de um sonho, posso sair à realidade se eu alcançar a outra entrada deste espaço? Tão logo pus termo a esse pensamento, caminhei à outra extremidade daquela área social — a do local onde se dava aquela formidável festa — ao chegar lá, vi-me diante de três militares; antes que o meu último passo me pusesse frente a frente com eles, um deles me disse isto:
— Alto! Detém-te! Neste espaço não podes adentrar-te; a partir desta cancela, não permitimos o trânsito de pessoas que não compõem o nosso destacamento. E prosseguiu esse altivo militar com estas palavras: — Eu sou o tenente Enrico Verpilio! Estes dois amigos meus que estão ao meu lado, respectivamente, são os sargentos Gaspare Carsenzuola e Vittorio Re; eles e eu, juntamente com todos os militares que aqui podes ver, estamos a comemorar o aniversário do nosso comandante — o coronel Vittorio Gogliati — o comandante do nosso batalhão de infantaria. Se quiseres vê-lo, ei-lo bem ali, à tua esquerda; ele é aquele oficial loiro e mais alto que está a sair daquela barraca. E continuou a falar aquele militar:
— Nosso comandante no dia oito de julho de 1943 aos 34 anos de idade, entre nós — os seus comandados — bem poderia ter comemorado o seu aniversário, não fosse a impiedosa Morte envolta por uma funesta coincidência, ou sob o jugo de uma mordaz inconfidência se encontrasse disposta a ceifar brutalmente a sua vida dele exatamente naquele momento de comemoração natalícia. Conforme sabes, hoje também é dia oito, o mês é julho, e o ano 2011, logo, exatamente nesta data, estamos a comemorar o seu aniversário dele; com essa mesma intenção, já o fizemos nesse dia, e nesse mês, porém em 1977; e novamente, o faremos em 2045; e a cada trinta e quatro anos, exatamente neste dia, e neste mês encontrar-nos-emos mais uma vez, neste mesmo lugar.
Despedindo-se de mim, esse oficial, disse-me ainda estas palavras:
— Estás dispensado! Por favor, afasta-te alguns passos deste lugar.
Dispus-me a retirar daquele sítio portentoso, porém, o fiz sem pressa, e sem dar as costas àquele militar; desse modo, fui me afastando passo a passo, mas, não sem antes, deixar que entre aqueles dois contingentes fardados ficassem vigilantes por mais alguns instantes os meus olhos; por agir assim, entre os demais militares que estava a observar, destacou-se-me aos olhos um determinado oficial, ou melhor, devo dizer, realçou-se-me às vistas em cada uma das lapelas da túnica desse militar uma cruz branca bordada, e mais, para mais a minha admiração incitar-se, logo abaixo da região do ombro esquerdo desse oficial, inseridos sobre a face externa da manga do seu uniforme, confeccionados com destacado primor encontravam-se dois emblemas bem precisos, quais sejam a bandeira do Brasil e um pequeno retângulo com estas características: com os seus cantos quebrados delimitava-se esse emblema por dois distintos pares de lados — um deles de oito centímetros e o outro de seis — esse pequeno retângulo encerrava em seu fundo amarelo circundado por um halo vermelho, a imagem estilizada de uma cobra na cor verde fumando um cachimbo vermelho do qual saiam tênues fios brancos que estavam a representar a fumaça resultante da queima do fumo; na parte superior dessa figura, inseria-se outro pequenino retângulo com lados aproximadamente de seis e dois centímetros com seus cantos superiores também quebrados, onde sobre um fundo azul, bem se destacava a palavra Brasil grafada na cor branca.
Por tal visão, muito mais espertou-se a minha curiosidade e mais se apagou o meu senso de obediência, assim, de forma incisiva, voltei-me ao oficial que me despedira, para lhe dizer isto:
Posso falar com aquele oficial?
— Referes-te a qual deles? Respondeu-me o meu interlocutor, quando, então, mais explícito deixei o meu pedido, por estas palavras mais terminantes:
Desejo muito falar com aquele senhor; aquele que neste momento, está a falar com o coronel Gogliati.
Assim disse-me aquele oficial: — tem a bondade, aguarda um instante, vou avisá-lo que o senhor tenciona dirigir-se a ele.
Pouco esperei para situar-me diante daquele militar; ao fazê-lo, fiquei estarrecido ao confirmar que estava frente a frente com um compatriota meu — o capitão capelão Antônio Álvares da Silva² — Se alguma palavra lhe dirigi, não me lembra agora, mas, algum diálogo houve, pois bem me recordo destas palavras suas dele:
— Filho! Não te assustes! Não te preocupes em dar explicações sobre os momentos que estiveste entre nós, pois, neste país, não há ninguém que possa compreender-te, e de mais a mais, se nas terras do Velho Mundo não há pessoas que se dispõem a ouvir-te com prazer, comprazer-te-ás com o silêncio delas… A ser assim, o quanto antes, em paz, volta ao nosso Brasil. Quando lá chegares, encontrarás alguém que bem entenderá o que tens a dizer sobre tudo que ouviste ou viste entre nós…
Tão logo recebi essa bênção, os primeiros alvores se ocuparam em ocultar das minhas vistas todos aqueles atores, e todo aquele cenário onde esses atuaram… Depois dessa ocorrência, esperei contar com sol para que tudo ficasse às claras, mas, quando esse se expôs, para o meu gaudio, aquela embaraçosa realidade não se ofuscou com luz dessa estrela maior… Por ter sido assim, tive mais esta certeza: quando a próxima noite que ainda está para nascer, tornar-se velha, de novo, aqui voltarei… Assim, com pesar, dispus-me a voltar para casa. Tão logo lá cheguei, com alguma indisposição, ao pai da minha neta relatei o fato ocorrido naquela noite passada, ou antes, tentei descrever aquele prodígio transcorrido durante as primeiras horas do dia que ainda estava em curso. Se espantadíssimo, com estas palavras, o esposo da minha filha interrompeu-me, antes que eu pudesse dizer-lhe o que vira e ouvira, sem dúvida, só poderia eu dizer que tentei fazer aquela descrição…
— Se de uma mente fantástica — quando não fanática — esse devaneio aluir-se pode, pôde, mais uma vez, tornar-se extremamente embaraçoso à nossa sociedade, pois desde o final de julho do ano de 1977, por meses a fio, essa história perturbadora deixou todo nosso país constrangido, quando não, preocupadíssimo, posto que exatamente há trinta e quatro anos, duas pessoas — dois senhores — relataram ter presenciado essa formidável festa, ou antes, esse grotesco e fictício encontro de militares; e agora, vem alguém que bem conheço afirmar que também o assistiu? Desmedida repercussão teve esse fantasioso relato, que envolveu até o nosso exército, e agora vens tu arrancá-lo do passado para que no presente, essa grotesca história recrudesça entre nós?
E mais isto disse o aflito esposo da minha filha:
— Eu particularmente, conheço essa história absurda; ela é fruto da imaginação de algumas pessoas que não se encontravam cônscias de si, ou de alguém que estava com a mente tisnada pelo nosso calor de julho… Ainda assim, essa pantomima burlesca radicou-se no imaginário da nossa gente, logo, é capaz de acender-se de tempos em tempos.
Julgando necessário mais falar, destas palavras não desistiu o injuriado pai da minha neta:
Digo-te mais, por tão bem conhecer esse disparate, poupo-te tempo, ao relatar estas próximas palavras tuas, às quais, só darei ouvido, se no olvido as lançares para sempre:
— Pessoalmente, conheci o coronel Vittorio Gogliati ao lado dos seus comandados dele.
E mais, já que és brasileiro, dir-me-ás mais isto:
— Deram-me notícias da festa passada, e anunciaram as que estão por vir; por fim, conversei com um oficial do meu país.
E mais isto disse o meu aflito interlocutor:
— A ser assim, e que diferente não seja, logo, logo, ou antes, neste momento, peço-te: não te exponhas ao ridículo, não relates essa fantasia a mais ninguém.
Se quase sempre, a certeza maior à menor dúvida não concede vez, o esposo da minha filha — agora menos cético — dispôs-se a acompanhar-me até aquele espaço onde eu estivera — ou assim devo dizer — onde, de forma cristalina, eu vi aqueles dois destacamentos militares que estiveram nas frentes de batalhas durantes as duas grandes guerras. Pois bem, depois desse entendimento, seguiu-se este evento:
Agora acompanhado pelo pai da minha neta, sob o manto da primeira noite que estava a preceder a anterior — a que serviu de cenário àquela formidável reunião — de volta àquele fabuloso sítio encontrava-me; tão logo nesse espaço chegamos, ao menos eu, isto observei:
Ao lado de um automóvel militar, deparei-me com quatro soldados; de imediato, três deles reconheci, pois, antes com eles estivera, e com dois deles conversara durante a noite passada; tratavam-se essas pessoas do padre Antônio Álvares da Silva — o Frei Orlando, o soldado Giovanni Ferrario, e o tenente Enrico Verpilio. Ao aproximar-me desses militares, se os meus passos o soldado desconhecido inclinou-se a deter, de ter sucesso com essa operação, foi ele dissuadido por estas palavras do meu compatriota — o Frei Orlando:
— Vejo que por aqui estás mais uma vez; se para fazê-lo, real motivo houve, ouve, mais uma vez, o que a ti já dissera antes.
¹ — As Dog tags são singulares plaquetas de identificação usadas por militares; recebem esse nome por se assemelharem, em função, com as coleiras usadas em cães (do inglês, dog tags); essas plaquetas servem principalmente à identificação de soldados mortos ou feridos; assim, cada militar há de portar em si duas delas; elas devem ficar sempre atadas ao seu corpo dele; entretanto, caso ocorra a sua morte dele, uma delas deve ser removida desse cadáver; já a outra — a segunda — através da pequena corrente que a sustenta, deve ser atada no dedão do pé daquele soldado morto; naturalmente essas dogs tags devem bem preservadas, pois só assim facilitarão com segurança, a identificação daquele defunto. Caso um militar porte algum caráter que requeira atenção especial, uma terceira plaqueta vermelha contendo as informações atinentes a essa ocorrência singular, deve ser posta juntamente com as duas dog tags usuais.
As informações contidas nessas plaquetas são as seguintes: na primeira linha, encontra-se o nome do país de origem do militar; na segunda, figura o nome completo do militar, podendo ter iniciais abreviadas; na terceira linha, bem expresso, há de ficar o número de ordem desse soltado, e o número da Região Militar onde ele se alistou; na quarta linha, há à frente de um “T” (indicativo de vacina antitetânica) o ano em que a mesma foi recebida pelo militar, e à direita desse ano, há a sua tipagem sanguínea dele — à época das duas grandes guerras não havia conhecimento sobre o fator Rh — finalmente, na última linha e ao centro, está gravada a patente desse referido militar.
² — Antônio Álvares da Silva, o Frei Orlando (Morada Nova de Minas, 13 de fevereiro de 1913 — Bombiana, Itália, 20 de fevereiro de 1945), foi um padre e militar brasileiro, tendo servido como capitão capelão do Exército Brasileiro.